Prédio Mira-Mortos.
Esturro, Beira.
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Depois
dos dois linchamentos ontem no Esturro, na cidade da Beira – Moçambique, fui
esta manhã ao bairro. Como é comum nas cidades moçambicanas, o Esturro
divide-se numa fronteira entre o asfalto e a terra batida. É deste último lado
que vive a esmagadora maioria da população em casas precárias. É precisamente do
lado de cá que funciona o circuito dos linchamentos, como se se fechasse
nas vivências dos pobres: uns não podem ter guardas e cães; outros valem-se
dessas fragilidades. Tratando-se, portanto, de um fenómeno de pobres para
pobres, é nesse nível em que as questões essenciais sobre os linchamentos devem
ser colocadas. Utopias grandiloquentes sobre injustiças socioeconómicas pouco
explicarão e pouco ajudarão a melhorar as condições de vida dos mais
fragilizados. Ao entrar na zona de terra batida do Esturro, uma primeira
senhora a quem pedi informações respondeu: Isso de queimar foi aí, no
Bazarinho. O Bazarinho é uma pequena praça situada na entrada no
bairro. Tem umas poucas bancas artesanais para pequenos negócios, como é
costume neste tipo de subúrbio. A dona de uma das bancas, que a
preparava para mais um dia de trabalho, disse: Foi aí onde está essa pequena
lixeira, onde tem essas cinzas, anteontem à noite. Parece que foi às duas da
manhã. O seu rosto não mostrava empatia para que tentasse prosseguir a
conversa. Dirigi-me, então, à pequena lixeira de rua que me indicou, uma das
muitas destas suburbanidades. Nela, a um canto, estavam bem marcados os
vestígios um pneu recentemente ardido. A cinza preta da borracha queimada e os
restos das cartilagens do pneu dispunham-se mais ou menos em círculo. Não
detectei outras marcas do exercício de justiça popular que se distinguissem do lixo
comum. Meia volta, e parei junto ao quintal da casa em frente. Aproximou-se um
jovem, aparentando vinte anos, mais um de poucas falas: Aqui não costuma
acontecer. Só aí noutros bairros. Eram seis, dois conseguiram fugir. Quatro
foram pegos [capturados] pela população. Dois queimados. Um morreu aí.
Outro foi no hospital. Os outros a polícia levou. Segui pela rua
perpendicular do mesmo quarteirão. Avistei uma senhora que cozinhava num
quintal, num fogão de carvão. Saudei-a do portão. Disse para me aproximar. Esta
foi bem mais expansiva, mas estava ocupada com os muitos afazeres da casa. Em
breves minutos, contou que o bairro andou calmo até à semana anterior, quando
começaram a ocorrer assaltos violentos a residências durante a noite. Primeiro,
um grupo de jovens armados com catanas, facas e machados tinha entrado numa
casa ali perto, de um casal. Roubaram uma série de bens e deixaram-nos feridos,
a ponto de permanecerem hospitalizados. Logo depois, esse ou outro grupo de
assaltantes forçou a entrada noutra residência. Ameaçaram violar a senhora,
matá-los se pedissem socorro. O marido entregou sem resistência o que quiseram.
Só quis que os deixarem com vida. A partir desse dia a população da zona ficou
alarmada, a preparar-se para outras eventualidades. Quando, na noite de segunda
para terça-feira, um grupo de jovens – a senhora não sabe se eram quatro ou
seis – estava a tentar arrombar o cadeado da porta de um casa modesta ali
perto, de uma mulher que vive sozinha, esta começou a gritar m’bava, m’bava,
m’bava (ladrão em massena, a língua local). Rapidamente várias pessoas,
sobretudo jovens do bairro, cercaram a casa. Daí, eles foram pegos,
explicou. A vizinha desta senhora acrescentou que, no domingo à meia-noite
junto ao muro da escola que fica próxima, quatro assaltantes tinham também
morto uma pessoa. Segui depois para um quarteirão mais adiante onde encontrei
dois irmãos, de trinta e seis e vinte anos, bem mais disponíveis para
conversar. Disseram-me que as pessoas – não só daquele bairro, também de outros
– há muito que andam cansadas daquilo. A polícia não vigia as ruas sem
iluminação. Durante a noite, em certos momentos, é perigoso circular. Segundo
os meus interlocutores, mesmo quando alguém se vai queixar na esquadra próxima
de que está a ocorrer um crime num dado local, por vezes a polícia recusa-se a
entrar de noite naquelas ruas. Pedem que a população capture e traga os
suspeitos para a esquadra para as autoridades poderem actuar. Mas as pessoas
comuns não têm meios para enfrentar gente que habitualmente recorre a armas
perigosas. E quando consegue capturá-los, as pessoas não vêem legitimidade na
polícia para intervir ou, depois da captura e da justiça feita, querer indagar
sobre o que ocorreu. Ouvi dos irmãos, uma vez mais, uma tese habitual: a população
desconfia que os criminosos são facilmente soltos pela polícia. Uma vez
entregues, seja por pagarem subornos aos polícias, seja por razões processuais,
eles saem. Por mim, não sei até que ponto estas ideias traduzem uma realidade
ou apenas crenças. A verdade é que as crenças movem o mundo. São sobretudo elas
que activam a justiça popular. Explicou ainda o mais jovem dos irmãos: a sorte
dos que caem nas mãos da população pode depender do tempo que medeia entre
serem apanhados e a chegada da polícia. Quanto maior a demora, maiores as
probabilidades de se cumprir o ritual dos linchamentos. Na madrugada de
terça-feira, uma das vítimas do linchamento ficou com vida porque a polícia
chegou no início da segunda execução. Caso contrário, os quatro teriam sido sumariamente
condenados. O processo é sempre o mesmo, como se fosse um ritual popular que
legitima o acto, à moda de um auto-de-fé instantâneo: colocar um pneu no
pescoço do capturado em flagrante delito, ainda que de um delito menor,
deitar-se gasolina ou petróleo ou qualquer combustível no pneu. É a «coroa»,
como dizem. Cumpridas as normas preparatórias, ateia-se fogo. Disse o mais
velho dos irmãos com quem conversei no bairro do Esturro: Mas isto dura
dois, três meses. O bairro fica calmo. Depois, de repente, a bandidagem pode
voltar. Pelo meu lado, é-me muito difícil, pelo menos para já, fazer juízos
de valor sobre o fenómeno. Tenho como hipótese que esta sociedade não tem um
problema moral nesta matéria, como noutras. É evidente que existem discursos para
todos os gostos, mas em geral as pessoas condenam que se retire a vida a quem
quer que seja ou que a justiça saia da alçada do estado. O que encontro vai
apontando bem mais para dilemas existenciais muito sensíveis, como se as
pessoas não vislumbrassem saídas entre ser vítima ou vitimar, morrer ou matar.
Mas tentar compreender o fenómeno não significa aceitar o acto. Neste mundo de
horrores, circulamos pelas ruas da cidade e intuímos as complexidades deste
mundo. A Beira é um dos locais de Moçambique onde caminhar pelas ruas, mesmo
solitários nos bairros suburbanos e respectivos mercados de rua a horas
diurnas, nos faz sentir relativamente seguros.
Gabriel Mithá Ribeiro
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