terça-feira, 11 de junho de 2013

Moçambique: notas de campo (9).







No mesmo país da catarse dos linchamentos de criminosos, um jovem empresário que arrisca procurar sucesso, há poucos meses tornado dono de uma farmácia com doze empregados, contou-me não se poder ausentar do local de trabalho sob pena do registo dos produtos vendidos ficar fora de controlo. A experiência vem-lhe demonstrando que, quando assim tem de ser, uma parte dos empregados envolve-se de imediato em negócios de venda informal de produtos farmacêuticos. Argumentou com números exemplificativos. Na sua ausência, o registo de entrada no início da semana de duzentas caixas de um dado medicamento pode terminar, no final dessa semana, com um balanço de cem caixas vendidas, cinquenta em stock e cinquenta extraviadas. Explicações dos empregados? Inconsequentes, como a de o fornecedor ter entregue algumas embalagens vazias ou incompletas e, infelizmente, não se ter procedido à verificação caixa-a-caixa no momento em que a mercadoria deu entrada. Provável? Sim. A empresa fornecedora terá os seus funcionários. Estranho? Também, uma vez que tal nunca acontece nas semanas e meses em que o proprietário do negócio está presente a tempo inteiro, períodos também em que o lucro diário médio das vendas é bem mais elevado. Por outro lado, no caso de alguns medicamentos esgotados em diversas farmácias e hospitais da cidade, o empresário pode ficar a saber que alguns pacientes conseguem comprá-los a um preço muito inferior no mercado paralelo. Nestas circunstâncias, está a tornar-se para ele difícil gerir e consolidar uma pequena empresa que sabe ser viável, não fosse a necessidade de se ausentar temporariamente e, sobretudo, não fosse o boicote dos que vivem dela. No meu ponto de vista, este tipo de situações tem muito maiores probabilidades de ocorrer onde existem predisposições culturais (com a respectiva componente ideológica) que ratificam o pequeno roubo pela gente comum, as mesmas predisposições culturais que levam os pequenos a rotular de patrão qualquer um, mas que depois manifestam dificuldades em associar tal estatuto a uma função empresarial. É por isso que o assunto poderia e deveria ser publicamente discutido na sua dimensão cultural. Mas não é. E a quem remeter os preconceitos: aos que identificam e querem debater o fenómeno ou aos que recalcam a sua existência entre os africanos? Se os roubos quotidianos nos bairros suburbanos impedem que muitas mais pessoas de estratos sociais inferiores possam sair progressivamente da pobreza, prejudicadas por aqueles com quem partilham um mesmo meio social (não pelos ricos), os pequenos roubos praticados por funcionários de qualquer empresa, negócio ou instituição constituem matéria seriíssima em termos de comportamentos cívicos e económicos. Ao que parece à vista desarmada, tais práticas em Moçambique são bem mais do que epifenómenos. Admitindo que a predisposição cultural aqui considerada tenha significado, nela reside um dos maiores obstáculos à sustentabilidade económica de um país cujos responsáveis estão sempre a agitar, e bem, a bandeira do combate à pobreza e à pobreza absoluta. Mas para eles e para os demais deveria ser mais do que sabido que é no núcleo das atitudes e comportamentos culturais quotidianos que se joga a ambição individualizada da procura de uma vida melhor, a viabilidade das empresas (nacionais e as que se instalam no país) ou, para citar outro caso, a consolidação e qualidade dos serviços públicos (saúde, educação, segurança, ambiente). Os últimos necessitam de suportes cívicos e, não menos, de suportes financeiros que, na substância, resultam da colecta de impostos pelo estado. São, portanto, as predisposições culturais de fundo que fazem mover um sistema (económico, social ou institucional) mais ou menos para a informalidade, com as consequências daí resultantes. Nesta sociedade africana, como noutras, seria bem mais útil centrar o debate sobre a corrupção (filha pródiga da informalidade) no nível dos comportamentos e atitudes quotidianos. Sustento o argumento partindo do pressuposto segundo o qual um dos atributos-chave que explica o impacto social de fenómenos disruptivos, no caso a corrupção, seja a quantidade de envolvidos e não apenas a sua qualidade ou estatuto social. Isto porque o modo como o assunto tem sido tratado transformou o lado periférico do fenómeno da corrupção no essencial, isto é, por serem facilmente visíveis quase só as elites estatais chamam a atenção de críticos e analistas. Sem pretender desculpabilizá-las, não deixa de ser evidente que as elites tornaram-se bodes expiatórios que escondem problemas socialmente disseminados. Desse modo, por muito que se discuta o assunto da corrupção na perspectiva habitual, no imediato ou a prazo pouco mais se conseguirá do que substituir os que hoje fazem pelos que amanhã farão. O que invariavelmente fica por saber nos fenómenos sociais disruptivos é o papel da esmagadora maioria dos pequenos, cujas atitudes e comportamentos são tão ou mais significativos para a qualidade da vida colectiva do que os dos grandes. Simplesmente não é possível ultrapassar tal bloqueio analítico se não se for capaz de focalizar a atenção nas predisposições culturais existentes e, ao mesmo tempo, manter a capacidade de não humilhar culturalmente os africanos como um todo, como se fez no passado. Sendo uma equação de muito difícil resolução, ainda assim o recalcamento do debate sobre o lado mau da cultura africana da gente comum – que é indubitável que existe, por exemplo também na feitiçaria que por todo o lado atinge aqueles que se demarcam no nível de vida dos demais – e suas consequências, tem sido e continuará a ser dramático para as próprias populações africanas. O politicamente correcto que se universalizou (ou globalizou, para respeitar a terminologia da moda) tem acarretado custos pesadíssimos.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 

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