No
mesmo país da catarse dos linchamentos de criminosos, um jovem empresário que
arrisca procurar sucesso, há poucos meses tornado dono de uma farmácia com doze
empregados, contou-me não se poder ausentar do local de trabalho sob pena do
registo dos produtos vendidos ficar fora de controlo. A experiência vem-lhe
demonstrando que, quando assim tem de ser, uma parte dos empregados envolve-se
de imediato em negócios de venda informal de produtos farmacêuticos. Argumentou
com números exemplificativos. Na sua ausência, o registo de entrada no início
da semana de duzentas caixas de um dado medicamento pode terminar, no final
dessa semana, com um balanço de cem caixas vendidas, cinquenta em stock
e cinquenta extraviadas. Explicações dos empregados? Inconsequentes, como a de
o fornecedor ter entregue algumas embalagens vazias ou incompletas e,
infelizmente, não se ter procedido à verificação caixa-a-caixa no momento em
que a mercadoria deu entrada. Provável? Sim. A empresa fornecedora terá os seus
funcionários. Estranho? Também, uma vez que tal nunca acontece nas semanas e
meses em que o proprietário do negócio está presente a tempo inteiro, períodos
também em que o lucro diário médio das vendas é bem mais elevado. Por outro
lado, no caso de alguns medicamentos esgotados em diversas farmácias e
hospitais da cidade, o empresário pode ficar a saber que alguns pacientes
conseguem comprá-los a um preço muito inferior no mercado paralelo. Nestas
circunstâncias, está a tornar-se para ele difícil gerir e consolidar uma
pequena empresa que sabe ser viável, não fosse a necessidade de se ausentar
temporariamente e, sobretudo, não fosse o boicote dos que vivem dela. No meu
ponto de vista, este tipo de situações tem muito maiores probabilidades de
ocorrer onde existem predisposições culturais (com a respectiva componente
ideológica) que ratificam o pequeno roubo pela gente comum, as mesmas
predisposições culturais que levam os pequenos a rotular de patrão
qualquer um, mas que depois manifestam dificuldades em associar tal estatuto a
uma função empresarial. É por isso que o assunto poderia e deveria ser
publicamente discutido na sua dimensão cultural. Mas não é. E a quem remeter os
preconceitos: aos que identificam e querem debater o fenómeno ou aos que
recalcam a sua existência entre os africanos? Se os roubos quotidianos nos
bairros suburbanos impedem que muitas mais pessoas de estratos sociais
inferiores possam sair progressivamente da pobreza, prejudicadas por aqueles
com quem partilham um mesmo meio social (não pelos ricos), os pequenos
roubos praticados por funcionários de qualquer empresa, negócio ou instituição
constituem matéria seriíssima em termos de comportamentos cívicos e económicos.
Ao que parece à vista desarmada, tais práticas em Moçambique são bem mais do
que epifenómenos. Admitindo que a predisposição cultural aqui considerada tenha
significado, nela reside um dos maiores obstáculos à sustentabilidade económica
de um país cujos responsáveis estão sempre a agitar, e bem, a bandeira do
combate à pobreza e à pobreza absoluta. Mas para eles e para os demais deveria
ser mais do que sabido que é no núcleo das atitudes e comportamentos culturais
quotidianos que se joga a ambição individualizada da procura de uma vida
melhor, a viabilidade das empresas (nacionais e as que se instalam no país) ou,
para citar outro caso, a consolidação e qualidade dos serviços públicos (saúde,
educação, segurança, ambiente). Os últimos necessitam de suportes cívicos e,
não menos, de suportes financeiros que, na substância, resultam da colecta de
impostos pelo estado. São, portanto, as predisposições culturais de fundo que
fazem mover um sistema (económico, social ou institucional) mais ou menos para
a informalidade, com as consequências daí resultantes. Nesta sociedade
africana, como noutras, seria bem mais útil centrar o debate sobre a corrupção
(filha pródiga da informalidade) no nível dos comportamentos e atitudes
quotidianos. Sustento o argumento partindo do pressuposto segundo o qual um dos
atributos-chave que explica o impacto social de fenómenos disruptivos, no caso
a corrupção, seja a quantidade de envolvidos e não apenas a sua qualidade ou
estatuto social. Isto porque o modo como o assunto tem sido tratado
transformou o lado periférico do fenómeno da corrupção no essencial, isto é,
por serem facilmente visíveis quase só as elites estatais chamam a atenção de
críticos e analistas. Sem pretender desculpabilizá-las, não deixa de ser
evidente que as elites tornaram-se bodes expiatórios que escondem problemas
socialmente disseminados. Desse modo, por muito que se discuta o assunto da
corrupção na perspectiva habitual, no imediato ou a prazo pouco mais se
conseguirá do que substituir os que hoje fazem pelos que amanhã farão. O que invariavelmente
fica por saber nos fenómenos sociais disruptivos é o papel da esmagadora
maioria dos pequenos, cujas atitudes e comportamentos são tão ou mais
significativos para a qualidade da vida colectiva do que os dos grandes.
Simplesmente não é possível ultrapassar tal bloqueio analítico se não se for
capaz de focalizar a atenção nas predisposições culturais existentes e, ao
mesmo tempo, manter a capacidade de não humilhar culturalmente os africanos
como um todo, como se fez no passado. Sendo uma equação de muito difícil
resolução, ainda assim o recalcamento do debate sobre o lado mau da cultura
africana da gente comum – que é indubitável que existe, por exemplo também
na feitiçaria que por todo o lado atinge aqueles que se demarcam no
nível de vida dos demais – e suas consequências, tem sido e continuará a ser
dramático para as próprias populações africanas. O politicamente correcto que
se universalizou (ou globalizou, para respeitar a terminologia da moda)
tem acarretado custos pesadíssimos.
Gabriel Mithá Ribeiro
Sem comentários:
Enviar um comentário