17-VIII
O
castanheiro e o abeto
As nossas jornadas
estivais nesta casa de campo nos arredores de Bonnieux dividem-se entre os
nossos quartos e as longas estadias preguiçosas no terraço virado para o monte
Ventoux e o vale do Calavon. Logo de manhã, antes das 8 h, as colinas distantes
da montanha são azuladas mas, ao entardecer, vão mudando para tons rosáceos e
avermelhados do estio provençal, terminando violetas antes do sol se pôr. O
terraço, à sombra do grande castanheiro que nos protege dos ardores do sol é,
sem dúvida, o centro dos nossas lazeres, tanto durante e dia como ao anoitecer.
A sua som sombra acolhedora, é o âmago do nosso quotidiano de visitantes e
turistas, com a vantagem de, no nosso repouso aqui, vermos os seus frutos
amarelecerem dia a dia e caírem depois para o chão, ora no terraço, ora no
poiso térreo inferior da casa, ali onde o nosso automóvel abóbora à espera das
nossas passeatas pelos arredores.
Não paro de olhar e
admirar esta árvore frondosa que ritma e marca o nosso dia-a-dia, assim como
acolhe as sucessivas revoadas de aves que o habitam em cada fase da jornada. E
calculo como será a sua colheita de castanhas este Verão, ficando, segundo
creio, pelo meio milhar, ainda que o Sr. Julien, proprietário deste gîte e desta vinhas e pomares em redor, nos
garante que este ano foi catastrófica uma doença que deu nas árvores, sobretudo
nos castanheiros, que mostram, de facto, as folhas com tendência para secarem
de modo demasiado precoce. E acrescenta que, antigamente, estas pragas se
combatiam com DDT, mas desde que este foi proibido, agora é deixar que as
maleitas façam das árvores o que bem lhes aprouver. Como sou ignaro em tudo o
que diz respeito ao mundo rural, não sei que lhe dizer, limitando-me a assistir
desolado à galopante secura que devasta a folhagem deste belo castanheiro que,
desde os primeiros aqui passados, me encheu duma ternura de que dei conta no
começo deste diário. Ele é, o castanheiro doente, o nosso protector, o patrono
da nossa breve permanência nesta terra, e decerto não me esquecerei de levar
umas quantas castanhas suas para as plantar no Monte Estoril. E lá vamos
continuando a tomar as nossas refeições diurnas debaixo da sombra deste nosso
guarda-sol adoentado, fazendo votos pelo seu triunfo sobre o desconhecido fungo
que o aflige.
Mas uma outra árvore de
grande porte merece também a minha tenção especial, um abeto azulado de enorme
estatura, bem visível do lado direito do terraço, antes de começarem os
compactos vinhedos mais abaixo no campo que nos envolve. Calculo que este abeto
terá uns quinze metros de altura, estendendo para o céu perpetuamente limpo as
suas ramadas verde-azuladas, muito direitas e preciosamente desenhadas pela sua
genética vegetal, num conjunto de rara simetria e elegância que não me canso de
admirar, em tudo diferente da confusa ondulação anárquica e bon enfant do nosso castanheiro tutelar.
Nas árvores, como no mundo da ética ou na estética dos seres que habitam a
terra, há estilos opostos, e este abeto azul e este castanheiro castanho roído
por um fungo parecem-me situar-se em mundos antagónicos, cada qual obedecendo a
naturezas próprias e decerto contraditórias entre elas. Seja com o for, olhar
para este abeto enche-me duma secreta satisfação íntima, no fundo tão forte
como admirar um poema excepcional ou observar uma boa pintura.
E é desta relação
misteriosa com as nossas irmãs árvores que gostaria de averbar duas ou três
reflexões soltas, tanto mais que raramente nos ocorre reflectir sobre a
dialéctica que mantemos com as florestas ou até com esta ou aquela árvore
isolada, na nossa rua, no nosso jardim mais próximo ou até numa curva da
estrada por onde passamos despreocupadamente e sem fito especial. De facto, uma
árvore é ser autónomo com o qual não é fácil manter uma relação pessoal e
directa, a não quer que a quiséssemos reproduzir num desenho ou num poema, pois
não é fácil dialogar com um ser vegetal onde poisa a nossa atenção ou simpatia
especial, seja ela um cipreste ou um pinheiro, uma acácia ou um abeto. Há
muitos anos atrás, na nossa casa em Galamares, virada para o palacete de
Monserrate, na serra de Sintra, habituei-me a dar uma atenção especial a cada
uma das árvores do nosso quintal, como se elas fossem vizinhos que compartiam
de algum modo o nosso espaço para além da residência propriamente dita, havendo
alguns cedros e, em especial, uns quantos pessegueiros que me mereciam especial
estima e atenção, recebendo cada um nome individual, parodicamente tirado da
antiguidade clássica – o Epaminondas, a Mnemósine, o Ulisses, o Édipo Rei, o
Tirésias...
Faltou-me coragem para ir mais longe do que esta tentação de paródia de relações com as árvores e foi preciso passar algumas semanas em Colónia, a dar aulas no âmbito do programa ERASMUS, para sentir quer faltavam florestas na minha vida, já que aquelas que eu conhecera na minha meninice africana não passavam de cenários a que não dera atenção alguma, imaginando-as tão só povoadas de animais ferozes e bichos ainda mais misteriosos. Agora, junto ao Reno, um colega alemão ajudava-me a conhecer em largas passeatas no automóvel dele, durante horas, alguns recantos da floresta de Eiffel, a dois passos da cidade onde ensinava, percebendo melhor até que ponto a alma germânica guardara este fundo – romântico ou bárbaro? – de cultivar relações vitais com florestas envolventes dos espaços burgueses. Nem mesmo os três anos passados nem Estrasburgo me tinham proporcionado a oportunidade de reencontrar ou adquirir esta amor pelas árvores, solitárias ou em massa, como horizonte indispensável para a respiração das nossas almas.
Desse período alsaciano só recordo
uma passeata mais longa pela floresta, sobretudo uma, para visitar um campo de
internamento nazi, no Struthof, com viçosos canteiros circundantes ornados de
flores admiráveis, havendo no meio deles uma placa de pedra encimada pela
inscrição latina Ossa humiliata
(ossos humilhados), com uma explicação que me petrificou: aquelas flores tinham
sido plantadas pelos guardas hitlerianos daquele campo destinado a encarcerar
elementos políticos franceses resistentes, depois encaminhados para outros
campos mais temerosos, embora alguns tivessem sido aproveitados por médicos
dementes para experiências pseudomédicas. O que valeu a muitos a morte, sendo
os seus corpos queimados e as suas cinzas utilizadas então para fertilizarem
aquelas hortenses gloriosas que continuavam a ornar agora o antigo campo de
concentração alsaciano, num cume da cadeia dos Vosgos.
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Desenho de Rudolf Naess, deportado do KL-Natzweiler
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Miro de novo o meu abeto
azulado e sinto que há nele um mistério que escapa ao impossível diálogo que
tento fazer com esta paisagem provençal que será minha durante um curto mês de
sol e lazer, antes de tornar a Portugal para junto dos jacarandás, pinheiros
mansos e plátanos do meu Monte Estoril. Com os seus azulados braços muito
direitos erguidos ao céu impassível deste estio passado na Provença, este abeto
tem um sentido que me escapa de todo em todo, mistério cerrado sobre o seu ser
intimo, antes de mais pela sua presença ocasional nesta paisagem com direcção o
monte Ventoux ao fundo, como tudo o mais que nos é emprestado pela natureza e
pelo acaso, e que só provisoriamente podemos considerar como significando algo
na nossa peregrinação pela vida com destino a nenhures.
João Medina
Vai o caríssimo João Medina perdoar-me, mas, e penitencio-me já pois que de uma gratuitidade se trata, apesar de tudo e de não ser merecido. Mas, dizia, devo, por aqui vir habitualmente, oferecer a minha opinião e dizer que o João Medina escreve francamente mal. Mal, naquele íntimo sentido em que o que escreve é ilegível. É inexpressivo apesar de toda a vertigem hiper descritiva, impressivo apesar da precisão do tempo e do espaço, vazio apesar da prolixidade. Apesar de tudo e muito mais que nem lhe sei explicar.
ResponderEliminarVai também perdoar-me. Mas falta sexo neste seu diário. Não chegam as fontes barrocas a jorrar. Até o Luís Pacheco sedado e aos 80 anos, num lar da margem sul, tinha mais pica com as enfermeiras. Heliogábalo
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