quinta-feira, 20 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (7).










14-VIII                                                                                  
         Lacoste, terra do Marquês

 

 Visitei Lacoste pela primeira vez há mais de quarenta anos, quando vivia o meu exílio provençal, atraído, antes de mais, pelo nome sulfuroso que se liga a esta aldeia no Luberon, terreola que se avista nitidamente de Bonnieux, e dela guardei uma única imagem forte, a de uma praceta muito fresca, com uma fonte no meio, onde se derramava um esguicho indolente de água que fui provar, tão pura e refrescante em claro contraste com a figura do sulfuroso marquês de Sade, cujo palácio, pilhado e queimado durante a Revolução, está hoje a ser reconstruído por iniciativa dum magnate da costura francesa, reduto fortificado que lhe servira, no alto da colina, para os suas relaxações, uma construção que lembra mais uma cidadela do que um Jardim das Delícias das Luzes, todo em pedra branca.

Devo dizer que nunca estimei a prosa, as ideias ou o provocações erótico-místicas do facinoroso marquês que passou uma trintena de anos encarcerado por causa dos seus crimes, já que nem Justine ou as Desventuras da Virtude nem os quatro ou cinco romances seus que também li me convenceram de que este autor alucinado merecesse atenção para além da aura de escândalo que gozou no seu tempo, acabando preso e internado num hospício de Charenton –situação de que Peter Weiss se serviu para montar uma engenhosa peça teatral, A Perseguição e Morte de Jean-Paul Marat representadas pelo Grupo teatral do Hospício de Charenton sob a Direcção do sr. de Sade (1964), onde o perverso erotómano ganhava foros de revolucionário, transformado este ci-devant numa espécie de Marat da sexualidade libertadora em tempos turvos de convulsão social e politica. A verdade é que o mundo humano de Sade é todo dogmático nos seus pressupostos de sexualidade mórbida, repulsivo e dum exagero demente. Foi precisamente essa prefiguração do mundo nazifascista que levou Pasolini a fazer um filme intitulado Salò ou as Cento e Vinte Jornadas de Sodoma (1975), que mostraria que a história de republiqueta de Mussolini actualizava o pesadelo do romance delirante de Sade, agora sob o duplo emblema das camisas negras do Fascio, à sombra da suástica hitleriana. Camus foi o primeiro a protestar contra a mitificação do “divino marquês”, resumindo-o num capítulo do seu Homem revoltado (1951), nesta síntese perfeita:

“O escritor, apesar de alguns gritos felizes, é secundário. Ele é admirado hoje com tanta ingenuidade por razões que não têm nada a ver com a literatura. Exalta-se nele o filósofo com grilhetas de ferro e o primeiro teórico da revolta absoluta. Ele podia sê-lo, com efeito. No fundo das prisões, o sonho não tem limites, e a realidade não refreia nada. A inteligência sob ferros perde em lucidez o que ganha em furor.(…). Ele não fundou uma filosofia, mas perseguiu o sonho monstruoso dum perseguido.”

A sua filosofia não passava duma submissão completa ao mal. É ainda Camus, o  inimigo de todos os totalitarismos, que no mesmo ensaio mostrava como Sade, com dois séculos de avanço, exaltou as sociedades totalitárias e preconizou uma  mundo de arame farpado e mirantes, ligando a liberdade do crime à liberdade sem freio dos costumes, como o referido filme de Pasolini o mostrou. E não deixa de ser esclarecedor que em 1860, conversando com os irmãos Goncourt, Flaubert explicava a sua aversão ao sadismo nestes termos: “Passée la soirée avec Flaubert. (…). Puis causerie sur de Sade, auquel revient toujours, comme fasciné, l’esprit de Flaubert: «C’est le dernier mot du catholicisme, dit-il. Je m’explique: c’est l’esprit de l’Inquisition, l’esprit de torture. L’esprit de l’Église du Moyen Age, l’horreur de la nature. Il n’ y a pas un arbre dans de Sade, ni un animal.” (Irmãos Goncourt, Journal. Mémoire de la Vie Littéraire, 9-I-1860). [1]

Regressando agora a Lacoste, vejo-a muito diferente daquela aldeia que conheci há quatro décadas atrás, agora mais turística do que nunca, com mercados em cada esquina, a ponto de não lobrigar onde ficava a fonte que então me cativou e levou a beber a sua água, tão cristalina e pura, verdadeira antítese do mundo turvo do marquês. Em frente do palácio de Sade a ser reconstruído, encontro um estranho monumento, mandado erguer pela Fundação Pierre Cardin, que quer transformar a antiga fortaleza de Sade num museu de pintura na Provença: um curioso busto em bronze de Michel Ourganov, mostrando uma cabeça com peruca no interior duma gaiola, donde só logram escapar, por baixo dela, os dois braços, à procura duma liberdade que nunca gozou, verdadeira mola psíquica duma obra monstruosamente inumana, inimiga dessas Luzes libertadoras que o século XVIII quisera espalhar pela Europa. Ao sair de Lacoste pela estrada em direcção a Bonnieux, o meu carro cruza-se com um enorme Mercedes, e diviso num relance, lá dentro, sozinho no banco traseiro, um velho de óculos escuros, a olhar com tédio a paisagem – é Cardin, o dono actual da mansão de Sade.

 






[1]  Veja-se Michel Onfray, Les Ultras des Lumières, vol. 4 da sua Contre-histoire de la Philosophie, Paris, Livre de Poche,  pp. 271-300.

2 comentários:

  1. Cardin por aí? :-) Gee. A aldeia é algo feiosa quand même...

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  2. Pierre Cardin!? E eu a pensar que era a Fátima Lopes e o Joe Berardo que vinham da quinta dos Budas, lá no Bombarral.
    Malhas que a provincia tece...
    Espero que tenham apagado as luzes libertadoras. Afinal temos todos que poupar.
    Tibério Cláudio Nero César

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