14-VIII
Lacoste,
terra do Marquês
Visitei Lacoste pela primeira vez há
mais de quarenta anos, quando vivia o meu exílio provençal, atraído, antes de
mais, pelo nome sulfuroso que se liga a esta aldeia no Luberon, terreola que se
avista nitidamente de Bonnieux, e dela guardei uma única imagem forte, a de uma
praceta muito fresca, com uma fonte no meio, onde se derramava um esguicho
indolente de água que fui provar, tão pura e refrescante em claro contraste com
a figura do sulfuroso marquês de Sade, cujo palácio, pilhado e queimado durante
a Revolução, está hoje a ser reconstruído por iniciativa dum magnate da costura
francesa, reduto fortificado que lhe servira, no alto da colina, para os suas
relaxações, uma construção que lembra mais uma cidadela do que um Jardim das
Delícias das Luzes, todo em pedra branca.
Devo dizer que nunca
estimei a prosa, as ideias ou o provocações erótico-místicas do facinoroso
marquês que passou uma trintena de anos encarcerado por causa dos seus crimes,
já que nem Justine ou as Desventuras da Virtude nem os quatro ou
cinco romances seus que também li me convenceram de que este autor alucinado
merecesse atenção para além da aura de escândalo que gozou no seu tempo,
acabando preso e internado num hospício de Charenton –situação de que Peter
Weiss se serviu para montar uma engenhosa peça teatral, A Perseguição e Morte de Jean-Paul Marat representadas pelo Grupo
teatral do Hospício de Charenton sob a Direcção do sr. de Sade (1964), onde
o perverso erotómano ganhava foros de revolucionário, transformado este ci-devant numa espécie de Marat da
sexualidade libertadora em tempos turvos de convulsão social e politica. A
verdade é que o mundo humano de Sade é todo dogmático nos seus pressupostos de
sexualidade mórbida, repulsivo e dum exagero demente. Foi precisamente essa
prefiguração do mundo nazifascista que levou Pasolini a fazer um filme
intitulado Salò ou as Cento e Vinte
Jornadas de Sodoma (1975), que mostraria que a história de republiqueta de
Mussolini actualizava o pesadelo do romance delirante de Sade, agora sob o
duplo emblema das camisas negras do Fascio, à sombra da suástica hitleriana.
Camus foi o primeiro a protestar contra a mitificação do “divino marquês”,
resumindo-o num capítulo do seu Homem
revoltado (1951), nesta síntese perfeita:
“O escritor, apesar de
alguns gritos felizes, é secundário. Ele é admirado hoje com tanta ingenuidade
por razões que não têm nada a ver com a literatura. Exalta-se nele o filósofo
com grilhetas de ferro e o primeiro teórico da revolta absoluta. Ele podia
sê-lo, com efeito. No fundo das prisões, o sonho não tem limites, e a realidade
não refreia nada. A inteligência sob ferros perde em lucidez o que ganha em
furor.(…). Ele não fundou uma filosofia, mas perseguiu o sonho monstruoso dum
perseguido.”
A sua filosofia não
passava duma submissão completa ao mal. É ainda Camus, o inimigo de todos os totalitarismos, que no
mesmo ensaio mostrava como Sade, com dois séculos de avanço, exaltou as
sociedades totalitárias e preconizou uma
mundo de arame farpado e mirantes, ligando a liberdade do crime à
liberdade sem freio dos costumes, como o referido filme de Pasolini o mostrou.
E não deixa de ser esclarecedor que em 1860, conversando com os irmãos
Goncourt, Flaubert explicava a sua aversão ao sadismo nestes termos: “Passée la
soirée avec Flaubert. (…). Puis causerie sur de Sade,
auquel revient toujours, comme fasciné, l’esprit de Flaubert: «C’est le dernier
mot du catholicisme, dit-il. Je m’explique: c’est l’esprit de l’Inquisition, l’esprit
de torture. L’esprit de l’Église du Moyen Age, l’horreur de la nature. Il n’ y
a pas un arbre dans de Sade, ni un animal.” (Irmãos Goncourt, Journal.
Mémoire de la Vie Littéraire, 9-I-1860). [1]
Regressando agora a
Lacoste, vejo-a muito diferente daquela aldeia que conheci há quatro décadas
atrás, agora mais turística do que nunca, com mercados em cada esquina, a ponto
de não lobrigar onde ficava a fonte que então me cativou e levou a beber a sua
água, tão cristalina e pura, verdadeira antítese do mundo turvo do marquês. Em
frente do palácio de Sade a ser reconstruído, encontro um estranho monumento,
mandado erguer pela Fundação Pierre Cardin, que quer transformar a antiga
fortaleza de Sade num museu de pintura na Provença: um curioso busto em bronze de
Michel Ourganov, mostrando uma cabeça com peruca no interior duma gaiola, donde
só logram escapar, por baixo dela, os dois braços, à procura duma liberdade que
nunca gozou, verdadeira mola psíquica duma obra monstruosamente inumana,
inimiga dessas Luzes libertadoras que o século XVIII quisera espalhar pela
Europa. Ao sair de Lacoste pela estrada em direcção a Bonnieux, o meu carro
cruza-se com um enorme Mercedes, e diviso num relance, lá dentro, sozinho no
banco traseiro, um velho de óculos escuros, a olhar com tédio a paisagem – é
Cardin, o dono actual da mansão de Sade.
[1] Veja-se Michel Onfray, Les Ultras des Lumières, vol. 4 da sua Contre-histoire de la
Philosophie , Paris, Livre de Poche, pp. 271-300.
Cardin por aí? :-) Gee. A aldeia é algo feiosa quand même...
ResponderEliminarPierre Cardin!? E eu a pensar que era a Fátima Lopes e o Joe Berardo que vinham da quinta dos Budas, lá no Bombarral.
ResponderEliminarMalhas que a provincia tece...
Espero que tenham apagado as luzes libertadoras. Afinal temos todos que poupar.
Tibério Cláudio Nero César