12-VIII
Resposta a Pascal
Estive de novo, na passada noite,
uma hora à espera, desde as 22h, das estrelas cadentes, embora a colheita fosse
magra, porquanto só me foi dado ver uma única estrela a tombar em diagonal pelo
céu, deixando um efémero sulco de luz azulada, logo extinto. E olhando o céu
tranquilo desta noite fresca estival, não pude deixar de pensar no terror que
inspirava a Pascal, cientista e cristão, o “silêncio dos espaços infinitos” (le silence éternel des espaces infinis
m’effraie): esta frase impressionou-me desde a primeira vez que a li,
quando andava na Faculdade de Letras e me entusiasmei pelos Pensées – nenhum dos meus professores do
curso de Filosofia o mencionara uma única vez! –, um livro patético cujos
radicalismo filosófico e teologia negativa não deixavam de ter similitudes com
a minha atitude de descrente não-cristão perante as questões essenciais do
infinito do cosmo, da inevitabilidade da morte, da miséria do homem, da ideia
de Deus e da permanente angústia humana.
Fi-lo meu, esse livro de gritos e clamores de alma amargurada e espírito
incapaz de se amoldar às aporias do pensamento, ainda que o Adonai dele não
fosse o meu e, sobretudo, porque para mim não tinha qualquer significado aquilo
que para o jansenista era causa de uma interminável dor, o facto de Jesus estar
em agonia até ao fim do mundo (“Jésus
sera en agonie jusqu´à la fin du monde”),como
ele escrevia. Embora o Deus dele fosse também, como o consignava enfaticamente
na sua confissão secretamente pregada no forro dum casaco seu, o mesmo de
Abraão, Jacob e Isaac, é evidente que o judeu crucificado no Gólgota não o
podia aceitar eu como divino. Já mais enigmático e até cruelmente masoquista me
parecia que um cristão tão convicto, embora atormentado por tantas dúvidas e
incertezas metafísicas, se apavorasse com a mudez do movimento das esferas
celestes no vasto espaço sideral, ele que tinha uma sólida formação científica
e que, talvez por essa razão, devesse aceitar que uma harmonia cósmica
universal mantivesse prodigioso maquinismo sem qualquer som, a não ser – o que
ele não podia conhecer – o estampido colossal do Big Banginicial. Noutra passagem das Pensées, Pascal mostrava-se capaz de ter de Deus uma ideia
incómoda, expressa nesta frase: “Par ceux qui sont dans le déplaisir de se voir
sans foi, on voit que Dieu ne les éclaire pas: mais les autres, on voit qu´il y
a un Dieu qui les aveugle.” Pascal era este crente que Deus cegava.
Voltando ao silêncio eterno dos espaços infinitos, pergunto-me porque é que
Pascal não tinha confiança suficiente na sua divindade para esperar que essa
ausência de ruídos não passasse duma curta duração temporal, já que, mesmo
durando séculos demasiado longos para a nossa pequenez vital de bichos da terra
tão pequenos, esse silêncio nunca seria eterno, e daria decerto lugar a uma
palavra divina, clamorosa palavra redentora que resgatasse esse vazio de sons,
mesmo que este durasse centúrias, já que cada século é apenas uma milionésima
fracção de segundo na mente divina, ainda que essa espera fosse excessiva aos
olhos mortais das nossas tão curtas passagens pela terra e para os nossos
mesquinhos destinos, afinal tão efémeros como o das borboletas se comparados
com a duração do tempo que uma só estrela da nossa galáxia, por exemplo o sol,
ainda terá de arder na solidão celeste antes de se apagar de todo. Um espírito
de certo moído pascaliano como o inglês Blake imaginava um medonho tigre a
arder nas florestas da noite de tal modo que nenhum olhar ou mão seria capaz de
dominar a sua temível simetria. E o filho do Deus cósmico dos cristãos ou dos
astrónomos, mesmo em agonia até ao final dos tempos, não teria essa mão direita
espantosa capaz de conter, controlar, fechando entre os seus dedos colossais
todos os círculos que os astros e estrelas cadentes desenham nas suas
revoluções pelos espaços antes de se abismarem, provavelmente também sem ruído,
no vazio universal, sempre silenciosamente?
O Tigre de Blake talvez fosse um Deus cego e enlouquecido perdido na selva
dum cosmo sem divindade, feito de matéria negra, embora o olhar de Deus fosse
capaz de o domar com um só gesto paralisante, aniquilando todo o furor selvagem
do seu incêndio astral. Já os mudos corpos estelares de Pascal, girando pelo
espaço como manadas de leões alucinados, parecem correr para lado nenhum, a não
ser para um despenhadeiro onde se abismem todas as feras de pedra que percorrem
o espaço sideral. Pascal diz que “o homem, que é um nada em relação ao infinito
e um todo em relação ao nada”, é incapaz tanto de ver o nada donde foi tirado
como em relação ao infinito em que foi mergulhado, ficando no “desespero eterno
de não conhecer nem o seu princípio nem o seu fim”. Por outro lado, observa
Pascal que o “finito se aniquila em presença do infinito e se torna puro nada”.
Olhando de novo a noite imensa que me rodeia, no meio desta placidez do
estio provençal, a partir desta casa onde passo estes instantes breves deste
estio de MMXII, não me consigo interrogar com a amargura filosófica e o temor
existencial de Pascal, sobretudo porque a amenidade da noite me torna inacreditável
o aparente o medonho “silêncio eterno dos espaços infinitos”.Troçando uma vez
deste célebre pensamento pascaliano, Paul Valéry, com toda a ironia de
racionalista na transição dos séculos XIX para XX, contrapunha-lhe o seu
rigoroso contrário lógico, replicando: “Os ruídos intermitentes dos pequenos
recantos tranquilizam-me”. E creio que é isto que me sossega e me impede de
levar a sério a abissal temor de Pascal ao ver os astros rolarem em silêncio
pelos espaços sem fim. Tivesse Pascal olhado, daqui, neste terraço virado para
a esta noite provençal, as estrelas cadentes que silenciosamente se extinguem
como pirilampos e talvez emendasse o seu pendor temeroso para imaginar que o
silêncio do firmamento era eterno e nenhuma palavra lhe pudesse pôr fim. Olho
de novo este benigno céu da minha querida Provença e não consigo sentir-me
atingido pelo inconsútil silêncio que Pascal imaginava sem termo, e vejo astros
que alguns já se devem ter apagado há muito mas cuja luminosidade ainda nos
chega, com as suas excessivas galáxias tão distantes e porventura inúteis,
autêntica orgia criativa de matéria dispersa por um espaço sem fim, no meio
duma maquinaria prodigiosamente complexa. Penso neste vasto universo desde o Big Bang até ao momento presente, muito
distante do futuro e possível rasgão final, e, à luz dum candeeiro, vou
lavrando estas linhas, com uma caneta de ponta de feltro num caderno de folhas
lisas, e pergunto-me sobre o que teria levado o cristão e cientista Pascal a
atemorizar-se com o silêncio destes astros perdidos no dossel cósmico.
O simples silêncio dos astros que percorrem cegamente este firmamento,
movidos por uma tremenda e cruel necessidade que os varre como esferas soltas,
a ausência possível de qualquer vida inteligente nesses astros vagabundos e
calados, perdidos, parece-me mais angustiante do que a dificuldade de Pascal.
Porquê este vazio de finalidade duma criação tão prodigiosamente complexa
quanto inútil? Ou a relação incompreensível de Adonai com a sua obra
astronómica aparentemente destituída de razão ou finalidade? Já o mero silêncio
desses corpos rolando alucinantemente velozes por um espaço imenso num
turbilhão harmonioso, inexplicável num abismo sem sentido, me parece uma
questão secundária. Esse silêncio do vasto cosmo seria igual ao silêncio do
Criador que engendrou toda esta prodigiosa maquinaria de força, matéria,
lógica, harmonia cega ou coesão intrínseca do sistema sideral em perpétuo
movimento? Será esse silêncio o mesmo que Adonai manifestou ao calar-se quando
o crime de Auschwitz ocorreu? Como, por fim, conciliar essa mudez feroz e
intolerável com a total ausência de palavras inscritas pelo Criador nos corpos
siderais ou nas pradarias sem limites onde esses astros vogam e se vão
desagregando e extinguindo?
A verdade é que a passagem nas Pensées
de Pascal sobre o silêncio eterno dos espaços infinitos não me permite ir
muito longe nestas conjecturas explicativas, pelo que a única objecção que de
facto lhe faço é que, nesta noite passada a olhar o céu estrelado nos arredores
de Bonnieux, numa casa campestre perdida nas faldas do Luberon, não consigo
entender o que realmente atemorizava o crente e cientista chamado Pascal, a não
ser, talvez, que seria esse silêncio de
Deus que mais o angustiava e embaraçava. O mais curioso desta minhas
recorrentes leituras dos Pensamentos de
Pascal está no facto, em nada paradoxal, de um não crente como eu sentir tanta
afinidade pela démarche intelectual
da sua escrita e raciocínio, sem que isso implique qualquer proximidade da
minha falta de fé com a fé cristã que ele sempre confessou. Acrescento um
derradeiro pensamento pascaliano me parece mais interessante: “Se há um Deus,
ele é infinitamente incompreensível, porquanto não tendo nem partes nem
limites, ele não tem qualquer relação connosco. Somos portanto incapazes de
conhecer o que ele é, nem se ele é. Sendo assim, quem ousará tentar resolver
essa questão? Não seremos nós, que não temos nenhuma relação com ele.” A partir
desta interrogação prévia, parte Pascal para a sua famosa aposta, a hipótese de um jogo que lha parecia, a este inventor da
primeira máquina de calcular, uma solução prática para a questão do nosso
impossível relacionamento com Deus ou crença na sua existência. Mas deixo então
de o seguir, talvez por falta de qualquer apetência pelo raciocínio matemático
ou cálculo de probabilidades – e miro de novo este tranquilo céu de verão
provençal, infinitamente longe, inacessível e silencioso, mas sem que isso me
atemorize.
João Medina
A frase de Pascal é: "o silêncio eterno dos espaços infinitos assusta-me”.
ResponderEliminarDiz João Medina: "Troçando uma vez deste célebre pensamento pascaliano, Paul Valéry (...) contrapunha-lhe o seu rigoroso contrário lógico, replicando: “Os ruídos intermitentes dos pequenos recantos tranquilizam-me”.»
Não se trata de "rigoroso contrário lógico", mas de uma frase construída com palavras contrárias às da frase inicial, o que é muito diferente.
Vacarme (grand bruit, bruit assourdissant, tapage, charivari) não se traduz por "ruído", mas sim por barulho ensurdecedor, barulheira, barulhada, berreiro, gritaria, tumulto, chinfrim, etc.