terça-feira, 18 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (5).









     12-VIII

        Resposta a Pascal

 

Estive de novo, na passada noite, uma hora à espera, desde as 22h, das estrelas cadentes, embora a colheita fosse magra, porquanto só me foi dado ver uma única estrela a tombar em diagonal pelo céu, deixando um efémero sulco de luz azulada, logo extinto. E olhando o céu tranquilo desta noite fresca estival, não pude deixar de pensar no terror que inspirava a Pascal, cientista e cristão, o “silêncio dos espaços infinitos” (le silence éternel des espaces infinis m’effraie): esta frase impressionou-me desde a primeira vez que a li, quando andava na Faculdade de Letras e me entusiasmei pelos Pensées – nenhum dos meus professores do curso de Filosofia o mencionara uma única vez! –, um livro patético cujos radicalismo filosófico e teologia negativa não deixavam de ter similitudes com a minha atitude de descrente não-cristão perante as questões essenciais do infinito do cosmo, da inevitabilidade da morte, da miséria do homem, da ideia de Deus e da permanente angústia humana.

Fi-lo meu, esse livro de gritos e clamores de alma amargurada e espírito incapaz de se amoldar às aporias do pensamento, ainda que o Adonai dele não fosse o meu e, sobretudo, porque para mim não tinha qualquer significado aquilo que para o jansenista era causa de uma interminável dor, o facto de Jesus estar em agonia até ao fim do mundo (“Jésus sera en agonie jusqu´à la fin du monde”),como ele escrevia. Embora o Deus dele fosse também, como o consignava enfaticamente na sua confissão secretamente pregada no forro dum casaco seu, o mesmo de Abraão, Jacob e Isaac, é evidente que o judeu crucificado no Gólgota não o podia aceitar eu como divino. Já mais enigmático e até cruelmente masoquista me parecia que um cristão tão convicto, embora atormentado por tantas dúvidas e incertezas metafísicas, se apavorasse com a mudez do movimento das esferas celestes no vasto espaço sideral, ele que tinha uma sólida formação científica e que, talvez por essa razão, devesse aceitar que uma harmonia cósmica universal mantivesse prodigioso maquinismo sem qualquer som, a não ser – o que ele não podia conhecer – o estampido colossal do Big Banginicial. Noutra passagem das Pensées, Pascal mostrava-se capaz de ter de Deus uma ideia incómoda, expressa nesta frase: “Par ceux qui sont dans le déplaisir de se voir sans foi, on voit que Dieu ne les éclaire pas: mais les autres, on voit qu´il y a un Dieu qui les aveugle.” Pascal era este crente que Deus cegava.

Voltando ao silêncio eterno dos espaços infinitos, pergunto-me porque é que Pascal não tinha confiança suficiente na sua divindade para esperar que essa ausência de ruídos não passasse duma curta duração temporal, já que, mesmo durando séculos demasiado longos para a nossa pequenez vital de bichos da terra tão pequenos, esse silêncio nunca seria eterno, e daria decerto lugar a uma palavra divina, clamorosa palavra redentora que resgatasse esse vazio de sons, mesmo que este durasse centúrias, já que cada século é apenas uma milionésima fracção de segundo na mente divina, ainda que essa espera fosse excessiva aos olhos mortais das nossas tão curtas passagens pela terra e para os nossos mesquinhos destinos, afinal tão efémeros como o das borboletas se comparados com a duração do tempo que uma só estrela da nossa galáxia, por exemplo o sol, ainda terá de arder na solidão celeste antes de se apagar de todo. Um espírito de certo moído pascaliano como o inglês Blake imaginava um medonho tigre a arder nas florestas da noite de tal modo que nenhum olhar ou mão seria capaz de dominar a sua temível simetria. E o filho do Deus cósmico dos cristãos ou dos astrónomos, mesmo em agonia até ao final dos tempos, não teria essa mão direita espantosa capaz de conter, controlar, fechando entre os seus dedos colossais todos os círculos que os astros e estrelas cadentes desenham nas suas revoluções pelos espaços antes de se abismarem, provavelmente também sem ruído, no vazio universal, sempre silenciosamente?

O Tigre de Blake talvez fosse um Deus cego e enlouquecido perdido na selva dum cosmo sem divindade, feito de matéria negra, embora o olhar de Deus fosse capaz de o domar com um só gesto paralisante, aniquilando todo o furor selvagem do seu incêndio astral. Já os mudos corpos estelares de Pascal, girando pelo espaço como manadas de leões alucinados, parecem correr para lado nenhum, a não ser para um despenhadeiro onde se abismem todas as feras de pedra que percorrem o espaço sideral. Pascal diz que “o homem, que é um nada em relação ao infinito e um todo em relação ao nada”, é incapaz tanto de ver o nada donde foi tirado como em relação ao infinito em que foi mergulhado, ficando no “desespero eterno de não conhecer nem o seu princípio nem o seu fim”. Por outro lado, observa Pascal que o “finito se aniquila em presença do infinito e se torna puro nada”.

Olhando de novo a noite imensa que me rodeia, no meio desta placidez do estio provençal, a partir desta casa onde passo estes instantes breves deste estio de MMXII, não me consigo interrogar com a amargura filosófica e o temor existencial de Pascal, sobretudo porque a amenidade da noite me torna inacreditável o aparente o medonho “silêncio eterno dos espaços infinitos”.Troçando uma vez deste célebre pensamento pascaliano, Paul Valéry, com toda a ironia de racionalista na transição dos séculos XIX para XX, contrapunha-lhe o seu rigoroso contrário lógico, replicando: “Os ruídos intermitentes dos pequenos recantos tranquilizam-me”. E creio que é isto que me sossega e me impede de levar a sério a abissal temor de Pascal ao ver os astros rolarem em silêncio pelos espaços sem fim. Tivesse Pascal olhado, daqui, neste terraço virado para a esta noite provençal, as estrelas cadentes que silenciosamente se extinguem como pirilampos e talvez emendasse o seu pendor temeroso para imaginar que o silêncio do firmamento era eterno e nenhuma palavra lhe pudesse pôr fim. Olho de novo este benigno céu da minha querida Provença e não consigo sentir-me atingido pelo inconsútil silêncio que Pascal imaginava sem termo, e vejo astros que alguns já se devem ter apagado há muito mas cuja luminosidade ainda nos chega, com as suas excessivas galáxias tão distantes e porventura inúteis, autêntica orgia criativa de matéria dispersa por um espaço sem fim, no meio duma maquinaria prodigiosamente complexa. Penso neste vasto universo desde o Big Bang até ao momento presente, muito distante do futuro e possível rasgão final, e, à luz dum candeeiro, vou lavrando estas linhas, com uma caneta de ponta de feltro num caderno de folhas lisas, e pergunto-me sobre o que teria levado o cristão e cientista Pascal a atemorizar-se com o silêncio destes astros perdidos no dossel cósmico.

O simples silêncio dos astros que percorrem cegamente este firmamento, movidos por uma tremenda e cruel necessidade que os varre como esferas soltas, a ausência possível de qualquer vida inteligente nesses astros vagabundos e calados, perdidos, parece-me mais angustiante do que a dificuldade de Pascal. Porquê este vazio de finalidade duma criação tão prodigiosamente complexa quanto inútil? Ou a relação incompreensível de Adonai com a sua obra astronómica aparentemente destituída de razão ou finalidade? Já o mero silêncio desses corpos rolando alucinantemente velozes por um espaço imenso num turbilhão harmonioso, inexplicável num abismo sem sentido, me parece uma questão secundária. Esse silêncio do vasto cosmo seria igual ao silêncio do Criador que engendrou toda esta prodigiosa maquinaria de força, matéria, lógica, harmonia cega ou coesão intrínseca do sistema sideral em perpétuo movimento? Será esse silêncio o mesmo que Adonai manifestou ao calar-se quando o crime de Auschwitz ocorreu? Como, por fim, conciliar essa mudez feroz e intolerável com a total ausência de palavras inscritas pelo Criador nos corpos siderais ou nas pradarias sem limites onde esses astros vogam e se vão desagregando e extinguindo?

A verdade é que a passagem nas Pensées de Pascal sobre o silêncio eterno dos espaços infinitos não me permite ir muito longe nestas conjecturas explicativas, pelo que a única objecção que de facto lhe faço é que, nesta noite passada a olhar o céu estrelado nos arredores de Bonnieux, numa casa campestre perdida nas faldas do Luberon, não consigo entender o que realmente atemorizava o crente e cientista chamado Pascal, a não ser, talvez, que seria esse silêncio de Deus que mais o angustiava e embaraçava. O mais curioso desta minhas recorrentes leituras dos Pensamentos de Pascal está no facto, em nada paradoxal, de um não crente como eu sentir tanta afinidade pela démarche intelectual da sua escrita e raciocínio, sem que isso implique qualquer proximidade da minha falta de fé com a fé cristã que ele sempre confessou. Acrescento um derradeiro pensamento pascaliano me parece mais interessante: “Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, porquanto não tendo nem partes nem limites, ele não tem qualquer relação connosco. Somos portanto incapazes de conhecer o que ele é, nem se ele é. Sendo assim, quem ousará tentar resolver essa questão? Não seremos nós, que não temos nenhuma relação com ele.” A partir desta interrogação prévia, parte Pascal para a sua famosa aposta, a hipótese de um jogo que lha parecia, a este inventor da primeira máquina de calcular, uma solução prática para a questão do nosso impossível relacionamento com Deus ou crença na sua existência. Mas deixo então de o seguir, talvez por falta de qualquer apetência pelo raciocínio matemático ou cálculo de probabilidades – e miro de novo este tranquilo céu de verão provençal, infinitamente longe, inacessível e silencioso, mas sem que isso me atemorize.
 
 
João Medina


1 comentário:

  1. A frase de Pascal é: "o silêncio eterno dos espaços infinitos assusta-me”.

    Diz João Medina: "Troçando uma vez deste célebre pensamento pascaliano, Paul Valéry (...) contrapunha-lhe o seu rigoroso contrário lógico, replicando: “Os ruídos intermitentes dos pequenos recantos tranquilizam-me”.»

    Não se trata de "rigoroso contrário lógico", mas de uma frase construída com palavras contrárias às da frase inicial, o que é muito diferente.

    Vacarme (grand bruit, bruit assourdissant, tapage, charivari) não se traduz por "ruído", mas sim por barulho ensurdecedor, barulheira, barulhada, berreiro, gritaria, tumulto, chinfrim, etc.

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