As penas criminais serão, em si, criminosas?
Decorria o ano de 1798, quando o governador da Bahia no
Brasil teve conhecimento da circulação clandestina de escritos que, entre
outras coisas, “propagavam a ideia da criação de uma república independente de
Portugal, instigando-se a população local, com uma forte componente de mulatos,
a sublevar-se contra a reinante política colonial”.
Arranjados uns bodes expiatórios, com mais ou menos culpas no
cartório, foram os mesmos condenados à morte: “Pelas 11 horas saiu o tétrico
préstito da prisão, iniciado por uma banda de cornetas e tambores, seguida por
diversas irmandades, de cruz alçada e com os respectivos vigários. Logo atrás
caminhavam o porteiro do Conselho, dois frades franciscanos, além de todos os
escrivães, meirinhos e porteiro do Tribunal da Relação da Bahia, que antecediam
os condenados, com as mãos atadas atrás das costas. Finalizavam esta fila,
empunhando a bandeira de Portugal, os representantes do Senado, os
alcaides-mores e mirins, o procurador do Conselho, a irmandade da Misericórdia
e, enfim, o carrasco”.
Segundo nos informa Pedro Almeida Vieira no seu
recém-publicado livro “Crime e Castigo – O Povo não é sereno”, “após a
execução, as suas cabeças foram degoladas e expostas no patíbulo. Aí também
ficaram as mãos de Luís Gonzaga das Virgens, consideradas instrumento dos
escritos sediciosos. As pernas, os braços e os troncos dos condenados
espalharam-se em diversas ruas da cidade”. E, a terminar, um pequeno detalhe:
“Relatos de época referem que, no dia seguinte, por causa do calor e de uma revoada
de urubus, a Bahia era um teatro macabro e malcheiroso. Porém, o governador
apenas permitiu a retirada das partes esquartejadas, após insistentes
solicitações dos irmãos da Misericórdia, no dia 15 de Novembro. Ou seja, uma
semana depois das execuções”.
A aplicação da Justiça, no seu essencial durante o século
XVIII, é a matéria-prima deste livro que nos relata, com abundância de
pormenores e requintes de malvadez, 25 casos verídicos que nos revelam bem a
forma como a Justiça nesses tempos não tinha qualquer preocupação de
retribuição, de prevenção ou de ressocialização. As penas eram de enorme
violência, independentemente da gravidade dos crimes, a tortura era utilizada
tanto para obter confissões como para castigar os que tinham confessado ou não
e o que importava, na aplicação das penas, era o castigo absoluto dos
violadores da ordem instituída e a glorificação de Deus e do Rei. Uma eventual
aplicação da lei de Talião – olho por olho, dente por dente - seria
inequivocamente uma politica penal defensora dos direitos dos réus...
.
.
Beccaria, jurista e filosofo italiano, em 1764 com a
publicação da sua obra “Dos delitos e das penas”, veio pôr em causa a pena de
morte e a tortura e defender, entre outras coisas, o primado da lei sobre o
arbítrio dos magistrados, a necessidade de as penas terem um fim preventivo e
de serem proporcionais à gravidade do crime cometido.
No nosso país, a Constituição de 1822, veio, com o advento do
liberalismo, estabelecer, por exemplo, no seu artigo 2.º que “a liberdade
consiste em não serem (os portugueses) obrigados a fazer o que a lei não
manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta
liberdade depende da exacta observância das leis”. E de tal modo “gato
escaldado, de água fria tem medo” que no seu artigo 4.ª a Constituição depois
de estabelecer que “ninguém deve ser preso sem culpa formada”, acrescentava que
“a lei designará as penas com que devem ser castigados, não só o Juiz que
ordenar a prisão arbitrária e os oficiais que a executarem, mas também a pessoa
que a tiver requerido”.
Chegados à actualidade, no nosso país, já não temos nem pena
de morte, nem tortura institucionalizada. As penas criminais passam pelas
multas, pela prestação de trabalho a favor da comunidade e pelas prisões.
E é deste mundo das prisões que nos fala uma outra obra recém-publicada,
“Segredo das Prisões” de António Pedro Dores e José Preto, um livro que assume
um carácter de denúncia do carácter injusto e violento do actual sistema
prisional português. A título de exemplo: “quando haja situações de atentados à
integridade física dos presos, o que é recorrente visto os castigos corporais
serem prática regular, os presos não pensam em queixar-se. Por um lado porque
se os castigos corporais forem ‘merecidos’ eles são aceites como regulamentares.
Por outro lado, porque qualquer queixa será alvo de retaliação por parte dos
visados ou até por parte de outros seus colegas (...). A saga de quem se
queixar é a quase certeza de obter para si um processo de perseguição que pode
incluir a intimidação pessoal, informações de mau comportamento, (...),
acusações posse de objectos ilícitos, tortura, etc.”
Em Maio, mês de Maria, temos, assim, dois livros que nos
obrigam a pensar no sentido da Justiça e da Vida.
Francisco Teixeira da Mota
Público,17/05/2013
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