sábado, 1 de junho de 2013

Os crimes e os castigos.










As penas criminais serão, em si, criminosas?


 

Decorria o ano de 1798, quando o governador da Bahia no Brasil teve conhecimento da circulação clandestina de escritos que, entre outras coisas, “propagavam a ideia da criação de uma república independente de Portugal, instigando-se a população local, com uma forte componente de mulatos, a sublevar-se contra a reinante política colonial”.

Arranjados uns bodes expiatórios, com mais ou menos culpas no cartório, foram os mesmos condenados à morte: “Pelas 11 horas saiu o tétrico préstito da prisão, iniciado por uma banda de cornetas e tambores, seguida por diversas irmandades, de cruz alçada e com os respectivos vigários. Logo atrás caminhavam o porteiro do Conselho, dois frades franciscanos, além de todos os escrivães, meirinhos e porteiro do Tribunal da Relação da Bahia, que antecediam os condenados, com as mãos atadas atrás das costas. Finalizavam esta fila, empunhando a bandeira de Portugal, os representantes do Senado, os alcaides-mores e mirins, o procurador do Conselho, a irmandade da Misericórdia e, enfim, o carrasco”.
 
 
 
 

Segundo nos informa Pedro Almeida Vieira no seu recém-publicado livro “Crime e Castigo – O Povo não é sereno”, “após a execução, as suas cabeças foram degoladas e expostas no patíbulo. Aí também ficaram as mãos de Luís Gonzaga das Virgens, consideradas instrumento dos escritos sediciosos. As pernas, os braços e os troncos dos condenados espalharam-se em diversas ruas da cidade”. E, a terminar, um pequeno detalhe: “Relatos de época referem que, no dia seguinte, por causa do calor e de uma revoada de urubus, a Bahia era um teatro macabro e malcheiroso. Porém, o governador apenas permitiu a retirada das partes esquartejadas, após insistentes solicitações dos irmãos da Misericórdia, no dia 15 de Novembro. Ou seja, uma semana depois das execuções”.

A aplicação da Justiça, no seu essencial durante o século XVIII, é a matéria-prima deste livro que nos relata, com abundância de pormenores e requintes de malvadez, 25 casos verídicos que nos revelam bem a forma como a Justiça nesses tempos não tinha qualquer preocupação de retribuição, de prevenção ou de ressocialização. As penas eram de enorme violência, independentemente da gravidade dos crimes, a tortura era utilizada tanto para obter confissões como para castigar os que tinham confessado ou não e o que importava, na aplicação das penas, era o castigo absoluto dos violadores da ordem instituída e a glorificação de Deus e do Rei. Uma eventual aplicação da lei de Talião – olho por olho, dente por dente -  seria inequivocamente uma politica penal defensora dos direitos dos réus...
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Beccaria, jurista e filosofo italiano, em 1764 com a publicação da sua obra “Dos delitos e das penas”, veio pôr em causa a pena de morte e a tortura e defender, entre outras coisas, o primado da lei sobre o arbítrio dos magistrados, a necessidade de as penas terem um fim preventivo e de serem proporcionais à gravidade do crime cometido.

No nosso país, a Constituição de 1822, veio, com o advento do liberalismo, estabelecer, por exemplo, no seu artigo 2.º que “a liberdade consiste em não serem (os portugueses) obrigados a fazer o que a  lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exacta observância das leis”. E de tal modo “gato escaldado, de água fria tem medo” que no seu artigo 4.ª a Constituição depois de estabelecer que “ninguém deve ser preso sem culpa formada”, acrescentava que “a lei designará as penas com que devem ser castigados, não só o Juiz que ordenar a prisão arbitrária e os oficiais que a executarem, mas também a pessoa que a tiver requerido”.

Chegados à actualidade, no nosso país, já não temos nem pena de morte, nem tortura institucionalizada. As penas criminais passam pelas multas, pela prestação de  trabalho a favor da comunidade e pelas prisões. E é deste mundo das prisões que nos fala uma outra obra recém-publicada, “Segredo das Prisões” de António Pedro Dores e José Preto, um livro que assume um carácter de denúncia do carácter injusto e violento do actual sistema prisional português. A título de exemplo: “quando haja situações de atentados à integridade física dos presos, o que é recorrente visto os castigos corporais serem prática regular, os presos não pensam em queixar-se. Por um lado porque se os castigos corporais forem ‘merecidos’ eles são aceites como regulamentares. Por outro lado, porque qualquer queixa será alvo de retaliação por parte dos visados ou até por parte de outros seus colegas (...). A saga de quem se queixar é a quase certeza de obter para si um processo de perseguição que pode incluir a intimidação pessoal, informações de mau comportamento, (...), acusações posse de objectos ilícitos, tortura, etc.”    

Em Maio, mês de Maria, temos, assim, dois livros que nos obrigam a pensar no sentido da Justiça e da Vida. 
 
 
 
 
Francisco Teixeira da Mota 

Público,17/05/2013
 
                                                               

 

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