sábado, 15 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (1).





Aguarela de Paul Hogarth, 1994

    
Para António de Araújo

 

7-VII-2012
Bonnieux

 

 

Há três anos que não visitava a Provença, aquela mágica região da França na qual passei quatro anos dos sete em que me expatriei no hexágono. Desta feita alugámos uma vivenda tipicamente campestre, com móveis provençais em madeira e batentes pintados de azul-alfazema, nos arredores da graciosa aldeia de Bonnieux, nas faldas do Luberon, virada para o vale do Calavon, onde outrora passara um rio e agora serpenteia a estrada Cavaillon-Apt, tendo diante dos olhos o monte Ventoux, meu velho conhecido de passeatas anteriores, com o seu cume branco que parece neve mas não passa de calcário branco brilhante ao sol. Há três anos atrás tínhamos alugado uma vivenda um tanto tosca, junto deste Ventoux, perto de Carpentras, ainda que demasiado próximo do cimo para podermos apreciar a montanha em toda a sua beleza solene.
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Neste momento escrevo estas linhas num caderno de folhas lisas, sobre a mesa de ferro no terraço para onde dá a sala de jantar, mesa recoberta com uma tolha de tecido provençal, à sombra dum castanheiro de grande porte que nos fornece toda a manhã o seu fresco recanto de lazer onde tomamos os nossos pequenos-almoços e almoços e esperamos que o sol se ponha a ocidente para jantarmos. Esta frondosa árvore protectora tem a altura da casa, um gîte de dois pisos, com um rés-do-chão onde nos alojamos, mais este terraço abençoado onde passamos grande parte da jornada, e um primeiro andar para as nossas visitas de Agosto, em férias como nós, vindas de Portugal. Uma população semifixa de pardais e pombos habita este fiel castanheiro, carregado de frutos que começam a amarelecer no interior dos seus estojos verdes, que se vão abrindo, deixando cair as suas castanhas. É preciso ir para o campo para sentir esta relação espontânea e forte que nos prende a uma árvore, onde poisam pássaros, ou a uma paisagem serrana imóvel no horizonte ou a estas vinhas que se multiplicam à nossa volta, carregadas de uvas tintas maduras ou ainda a estas árvores de fruta que descem pelo vale. E é esta relação com a natureza, descoberta de tempos a tempos, que gosto de reencontrar na minha Provença, aquela que, de certo modo, gravada na pele invisível da alma e na memória, faz parte integrante do animal fugitivo, saudoso e vagabundo que sou, como uma espécie de pecúlio secreto de vivências, pequenos tesouros e tropismos que vou guardando enquanto habitante provisório desta região que é, também e dum modo persistente, minha. Mesmo sem pacto notarial a registá-lo, estas propriedades invisíveis pertencem-nos de modo mais fixo e determinante do que os apartamentos ou os objectos que compramos nesta vida efémera de peregrinos, isto é, de quem anda per agros.

A verdade é que, para além de ter vivido na Provença os últimos quatro anos de exílio, à espera do regresso da democracia a Portugal para poder ali voltar, esta terra do sul faz parte da minha vida interior mais íntima, como se a ligação da nossa existência com um certo local geográfico ou uma dada paisagem impressiva fosse um maravilhoso caso de paixão amorosa, para sempre presente no pulsar do nosso coração, mesmo depois de termos perdido o nexo que nos ligava de modo tão inesperado e absurdo a um determinado ponto do espaço, a uma dada cidade, doravante cultuada pela saudade. Depois há ainda o fervor que se concretiza em páginas escritas, e tantas foram as que dediquei a Aix-en-Provence e àqueles infindáveis dias ali passados a aguardar a chegada de D. Sebastião, durante as longas noites brancas dessa espera de quatro anos que comecei a supor intérmina. Dessas páginas, escritas em crónicas de jornais e livro – como na autobiografia ficcionada Memórias do Gato que ri (2002) –, ficou-me a impressão de ter provado até que ponto me sinto para sempre ligado a esta região meridional da França, a estas paisagens, a estes sóis cálidos, estes bosques de verdura e estes casarios de cores ocres e terra-de-Siena, a ponto de ter exigido que na capa do livro de biobibliografia que os colegas da Faculdade de Letras de Lisboa me dedicaram na altura da minha jubilação – Pensar e Sentir a História (2009) – figurasse um recanto emblemático de Aix, a minha amada praceta dos Quatro Delfins, aquele delicado obelisco com o seu quarteto de golfinhos cujas jorram águas num pequeno tanque elegante. Não, não há em nada disto egocentrismo ou vaidade, mas tão só a exigência do amante ver a sua amada referida, citada, mostrada e nomeada.

O que explica esta minha reincidência em regressar à Provença? A vontade de ir cada Verão até aqui, nesta terra de que me sinto parte integrante, mesmo que quase ninguém o saiba e que a própria terra tão amada por mim nada ou quase nada se dê conta desta minha afeição. E há ainda o facto de uma pequena família portuguesa aqui expatriada, a minha mulher e os meus três filhos, dos quais dois nasceram em França, sendo o Daniel de Estrasburgo e a Sibila nativa de Aix, onde veio ao mundo em 1971, ter vivido nesta espécie de ilha ensolarada que o destino quis fosse nosso refúgio e cativeiro doirado durante quatro anos. Tudo isto pertence, sem dúvida, à esfera da intimidade da minha vida e daqueles que fazem parte dela, mas na verdade acaba por tomar uma dimensão menos singular e individual se pensarmos que ela está na origem de reflexões que incessantemente tenho cogitado e escrito em livros meus. Daí também esta recorrente vontade de descobrir mais um recanto ainda desconhecido da Provença, como esta Bonnieux onde agora poisamos para um mês de férias estivais. Tendo-me sentido sempre um desenraizado, e vivido em menino em Moçambique, na África do Sul, e de novo, na adolescência, em Lourenço Marques, de seguida em Portugal durante os anos universitários, depois em França e três vezes nos Estados Unidos durante anos lectivos passados em universidades americanas, creio que, no fundo, tive este teimoso ulissismo, ou seja, esta vontade de regressar a uma Ítaca que, mesmo não tendo nascido nela, me sentisse regressado ao porto de origem, que no meu caso nunca tive realmente, pelo que me prendo, por sentimentalismo, pelos olhos ou pelo coração saudoso, a esta ou aquela terra dilecta, fosse ela Providence, na Nova Inglaterra, ou esta Provença onde volto ritualmente. Ou ao Monte Estoril onde, desde o Outono da vida, me fixei há duas décadas. Todavia, se tivesse a necessidade de mencionar as cidades a que me sinto mais profundamente ligado pela saudade, teria de escolher, sem dúvida, quatro: a Joanesburgo da minha meninice, a Aix dos anos de exílio doirado, a Providence dos dois anos de professor visitante, e, por fim, o Monte Estoril, por serem elas as minhas patrias chicas.

 


João Medina



 
 

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