Para António de Araújo
Bonnieux
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Neste momento escrevo
estas linhas num caderno de folhas lisas, sobre a mesa de ferro no terraço para
onde dá a sala de jantar, mesa recoberta com uma tolha de tecido provençal, à
sombra dum castanheiro de grande porte que nos fornece toda a manhã o seu
fresco recanto de lazer onde tomamos os nossos pequenos-almoços e almoços e
esperamos que o sol se ponha a ocidente para jantarmos. Esta frondosa árvore
protectora tem a altura da casa, um gîte de dois
pisos, com um rés-do-chão onde nos alojamos, mais este terraço abençoado onde
passamos grande parte da jornada, e um primeiro andar para as nossas visitas de
Agosto, em férias como nós, vindas de Portugal. Uma população semifixa de
pardais e pombos habita este fiel castanheiro, carregado de frutos que começam
a amarelecer no interior dos seus estojos verdes, que se vão abrindo, deixando
cair as suas castanhas. É preciso ir para o campo para sentir esta relação
espontânea e forte que nos prende a uma árvore, onde poisam pássaros, ou a uma
paisagem serrana imóvel no horizonte ou a estas vinhas que se multiplicam à
nossa volta, carregadas de uvas tintas maduras ou ainda a estas árvores de
fruta que descem pelo vale. E é esta relação com a natureza, descoberta de
tempos a tempos, que gosto de reencontrar na minha Provença,
aquela que, de certo modo, gravada na pele invisível da alma e na memória, faz
parte integrante do animal fugitivo, saudoso e vagabundo que sou, como uma
espécie de pecúlio secreto de vivências, pequenos tesouros e tropismos que vou
guardando enquanto habitante provisório desta região que é, também e dum modo
persistente, minha.
Mesmo sem pacto notarial a registá-lo, estas propriedades invisíveis
pertencem-nos de modo mais fixo e determinante do que os apartamentos ou os
objectos que compramos nesta vida efémera de peregrinos, isto é, de quem anda per agros.
A verdade é que, para
além de ter vivido na Provença os últimos quatro anos de exílio, à espera do
regresso da democracia a Portugal para poder ali voltar, esta terra do sul faz
parte da minha vida interior mais íntima, como se a ligação da nossa existência
com um certo local geográfico ou uma dada paisagem impressiva fosse um
maravilhoso caso de paixão amorosa, para sempre presente no pulsar do nosso
coração, mesmo depois de termos perdido o nexo que nos ligava de modo tão
inesperado e absurdo a um determinado ponto do espaço, a uma dada cidade,
doravante cultuada pela saudade. Depois há ainda o fervor que se concretiza em
páginas escritas, e tantas foram as que dediquei a Aix-en-Provence e àqueles
infindáveis dias ali passados a aguardar a chegada de D. Sebastião, durante as
longas noites brancas dessa espera de quatro anos que comecei a supor
intérmina. Dessas páginas, escritas em crónicas de jornais e livro – como na
autobiografia ficcionada Memórias do Gato que
ri (2002) –, ficou-me a impressão de ter provado até que ponto me sinto
para sempre ligado a esta região meridional da França, a estas paisagens, a
estes sóis cálidos, estes bosques de verdura e estes casarios de cores ocres e
terra-de-Siena, a ponto de ter exigido que na capa do livro de biobibliografia
que os colegas da Faculdade de Letras de Lisboa me dedicaram na altura da minha
jubilação – Pensar
e Sentir a História (2009) – figurasse um recanto emblemático de Aix, a
minha amada praceta dos Quatro Delfins, aquele delicado obelisco com o seu
quarteto de golfinhos cujas jorram águas num pequeno tanque elegante. Não, não
há em nada disto egocentrismo ou vaidade, mas tão só a exigência do amante ver
a sua amada referida, citada, mostrada e nomeada.
O que explica esta
minha reincidência em regressar à Provença? A vontade de ir cada Verão até
aqui, nesta terra de que me sinto parte integrante, mesmo que quase ninguém o
saiba e que a própria terra tão amada por mim nada ou quase nada se dê conta
desta minha afeição. E há ainda o facto de uma pequena família portuguesa aqui
expatriada, a minha mulher e os meus três filhos, dos quais dois nasceram em
França, sendo o Daniel de Estrasburgo e a Sibila nativa de Aix, onde veio ao
mundo em 1971, ter vivido nesta espécie de ilha ensolarada que o destino quis
fosse nosso refúgio e cativeiro doirado durante quatro anos. Tudo isto
pertence, sem dúvida, à esfera da intimidade da minha vida e daqueles que fazem
parte dela, mas na verdade acaba por tomar uma dimensão menos singular e
individual se pensarmos que ela está na origem de reflexões que incessantemente
tenho cogitado e escrito em livros meus. Daí também esta recorrente vontade de
descobrir mais um recanto ainda desconhecido da Provença, como esta Bonnieux
onde agora poisamos para um mês de férias estivais. Tendo-me sentido sempre um
desenraizado, e vivido em menino em Moçambique, na África do Sul, e de novo, na
adolescência, em Lourenço Marques, de seguida em Portugal durante os anos
universitários, depois em França e três vezes nos Estados Unidos durante anos
lectivos passados em universidades americanas, creio que, no fundo, tive este
teimoso ulissismo,
ou seja, esta vontade de regressar a uma Ítaca que, mesmo não tendo nascido
nela, me sentisse regressado ao porto de origem, que no meu caso nunca tive
realmente, pelo que me prendo, por sentimentalismo, pelos olhos ou pelo coração
saudoso, a esta ou aquela terra dilecta, fosse ela Providence, na Nova
Inglaterra, ou esta Provença onde volto ritualmente. Ou ao Monte Estoril onde,
desde o Outono da vida, me fixei há duas décadas. Todavia, se tivesse a
necessidade de mencionar as cidades a que me sinto mais profundamente ligado
pela saudade, teria de escolher, sem dúvida, quatro: a Joanesburgo da minha
meninice, a Aix dos anos de exílio doirado, a Providence dos dois anos de
professor visitante, e, por fim, o Monte Estoril, por serem elas as minhas patrias chicas.
Confirmo: é uma maravilha, aliás, toda a França o é :-)
ResponderEliminarLindo texto. Como você, também amo a Provence. Um grande abraço.
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