sábado, 4 de maio de 2013

Activos tóxicos.





 
 
A agência da CGD do Calhariz, no Dia Internacional do Livro
 
 

         No Dia da Mãe, não podemos deixar de formular uma nota do mais vivo repúdio face à actuação maternalista e paternalista de um órgão de soberania nacional: a Caixa Geral de Depósitos. Foi lamentável, a todos os níveis e sobretudo a todos os títulos, o cancelamento da acção promocional agendada para assinalar o Dia Mundial do Livro. Projectava a CGD distribuir, junto da sua clientela mais antiga e fiel e de bibliotecas pudicas e privadas, obras livrescas que contribuíssem para exponenciar a potência cultural dos aforradores e pensionistas. Por falso pudor ou moralismo hipócrita, a institucionalista e puritana CGD cancelou tudo, privando os seus depositantes de clássicos como Quando Dormes Nunca Te Odeio, da autoria de Hugo Santinhos Pereira. Se Proust ficou celebrizado pela vagarosa degustação de madalenas e bolos de arroz, o ficcionista Hugo Santinhos Pereira é, como sabeis, o autor da imorredoura frase: «Só sei que estou vivo porque me esporrei» (constante do livro que a CGD tencionava ofertar a aposentados atrevidotes).  Segundo o site da editora, a Saída de Emergência, trata-se de «escrita escapista» (sem dúvida!), em que «tudo se mistura, sem que saibamos compreender qual a sobriedade de alguém apaixonado». De facto, no livro tudo se mistura, sem que nós saibamos compreender porquê. Enfim, era este activo tóxico que a Caixa Geral de Depósitos pensava distribuir no mercado secundário aquando do Dia Mundial do Livro. À última hora, cancelou a dádiva de 12 mil (sim, 12 mil) livros. Está mal. Isso é puro Fahrenheit 451. Abjecto. Entendeu a Caixa de Depósitos, numa atitude confiscatória similar à dos seus congéneres cipriotas, que os respectivos clientes não têm maturidade intelectual e densidade literária para alcançar o sentido metafórico de títulos como Sr. Bentley, o Enraba Passarinhos, de Ágata Ramos Simões, descrita na sinopse como uma obra que «carrega com alegria sobre os ombros tudo o que de mais abjecto, medonho, mesquinho, estúpido e medíocre os portugueses têm».  
 
 
Ágata Ramos Simões, Sr. Bentley, o Enraba Passarinhos
 
Hugo Santinhos Pereira, Quando Dormes Nunca Te Odeio

 

Agora, um trecho da obra de Santinhos Pereira, o magnífico poema «Pai Ausente». A questão não está, como é óbvio, nas expressões usadas, mas antes no modo como o poeta encarreira e alinha as palavras, produzindo pérolas líricas como esta:  

 

 

 
Pai Ausente
Pensar em ti. Fodendo contigo.
O teu dogma abandonou-te.
Deixou livre a cama para uma nova religião.
Dúvidas. Tu duvidaste de mim.
A tua Fé denunciou-te. Apontou o dedo. Acusou-te.
Ausentou-se permanentemente.
Doce triste revelação, bem escrita nas marcas do corpo.
Duas moedas de cinquenta cêntimos deixadas nos teus
olhos. Pensa nisso.
Pensa no barqueiro que já não vai estar lá para ti.
Dentes afiados e sonhos invertidos.
Marcas de um arco-íris azul-preto-roxo.
Deus branco pálido a sair do quarto.
Lutando para se desconectar de ti,
pingando para fora da tua cona.
Desligando de ti.
Sou melhor que o teu pai.
Sou melhor que nada.
(Hugo Santinhos Pereira, Quando Dormes Nunca Te Odeio, pág. 92).
 

 

         Contas feitas, uma fonte da CGD disse que esta audaciosa operação bancária de risco custou 280 mil euros aos cofres da Caixa Geral.  Contudo, a posição oficial do banco é que não houve custos de monta nesta operação de swap cultural, excepto os que resultaram do fabrico dos marcadores para os livros. Entre esses livros, Despertada, uma história assinada por Kristin Cast e P. C. Cast sobre um tema muito original: vampiros.  Da próxima vez que for actualizar a sua caderneta aos sonolentos balcões da CGD, exija um marcador do livro Sr. Bentley, o Enraba Passarinhos. Já agora, traga dois ou três, para distribuir por familiares e amigos. No Dia da Mãe, ofereça um à sua mãe. 280 mil euros?! Gastos com marcadores de livros?! Isto, sim, é pornográfico. 
 
 
 
António Araújo


2 comentários:

  1. :) Soube antes e estava a preparar-me para passar pelo menos por uma Agência da C.G.D. e convencer familiares a fazê-lo, quando li que tinha ficado sem efeito. Fiquei muito decepcionada, mas ler este texto ajudou-se a ultrapassar o trauma...não sei é se não devo ir de agora novo à luta pelos marcadores...

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  2. Atenção às demagogias baratas, esta "operação" não tinha de facto custos para a Caixa, pois os livros foram escolhidos e oferecidos pela Editora. Já agora, a editora é que não apresentou alternativas para os livro mais controversos.

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