quarta-feira, 29 de maio de 2013

Moçambique: notas de campo (5).





Sebastião Salgado





Enquanto os pobres começam a formar-se para a vida nos quintais e entre pares nas ruas dos bairros suburbanos, a educação das crianças de classes médias e altas recorre a empregadas-amas que delas tomam conta dentro das habitações, nas saídas a tempo inteiro ou nos intervalos dos infantários. Para as minorias, a situação tem ainda a vantagem de gerar aproximações inter-raciais desde o berço. De uma ou de outra forma, ficarão atados para sempre laços afectivos entre as crianças e quem delas cuida, cujos efeitos, neste contexto, explicam a diluição das tensões raciais em sociedades fortemente heterogéneas (por razões de etnias, raças, línguas, religiões, origens, distribuição de riqueza, campo-cidade, filiações políticas e tudo o mais), como a moçambicana. O fenómeno, como se sabe, remonta ao tempo colonial. Contudo, para além dos afectos, não vejo porque não problematizar o assunto de modo friamente técnico. Aí ressaltam interrogações sobre a qualidade da formação linguística, direito universal dos povos que alguns podem ter transformado em coisa de brancos. Se o sotaque e a criatividade, como a vulgarização do desconsegui, são marcas identitárias apreciáveis, as amas, em geral, falam mal o português, modelando linguagens que podem durar para a vida das agora crianças. Por exemplo, quando a ama diz que O canal di bonêcos que êsta criança gôsta é xexento e sês, a menina ou menino confirmam: Ê xexento e sêssss!!!, crianças que, à mesa dos pais, podem preferir passar a refeição na esteira estendida no chão da cozinha, comendo farinha e caril de peixe à mão como e com as suas amas-mães. E não vale a pena escândalos fingidos. Lares de antigos revolucionários nacionalistas africanos confirmam a regra. Por mim, se tivesse de criar descendência por aqui, e podendo pagar, um dos critérios de escolha da segunda mãe seria o atributo da melhor qualidade possível da candidata ao nível na expressão verbal em língua oficial (não coincidente com as diversas línguas nacionais). Não me libertaria de remorsos se passasse à descendência o meu sofrível português. A alternativa, mais em conta, seria a de optar pela pedagogia paciente, corrigindo a ama-mãe no dia-a-dia. Há até algum cinismo entre os que, de bem com a vida (ou, pelo menos, melhor do que a habitual gente comum), relativizam a importância da língua portuguesa na afirmação social nestas sociedades cada vez mais concorrenciais. Basta reparar nos trejeitos de exibicionismo de alguns negros e mestiços que dominam com mestria a língua oficial, ou julgam dominar (ambas hipóteses são válidas), e nas compensações sociais que daí retiram ou ambicionam retirar. Por seu lado, os jovens pobres das periferias urbanas, esses, vão esfrangalhando o sentido de utopias intelectuais em defesa das línguas nacionais africanas. Se elas devem ser salvas, devem sê-lo, em primeiro lugar, da crescente rejeição pelas novas gerações urbanas genuinamente africanas. Não das garras culturais dos neo-colonizadores eurocêntricos. Não das garras do Ocidente, pau para todas as recriminações. Por muito que os jovens respeitem as línguas herdadas das suas tradições familiares, não é menos verdade que procuram confortar-se de moto próprio no regaço do português, colo de ama que nunca tiveram. É andar pelos bairros pobres a ouvi-los. É prestar atenção aos recreios das escolas. É apreciar as falas no animado e poeirento futebol de rua (as muitas ruas sem alcatrão têm as suas vantagens). De resto, numa troca de palavras informal com uma docente do pré-escolar e da primária, fiquei a saber que tentou introduzir, no vocabulário dos alunos, palavras em massena, o idioma dominante na Beira, e parte dos pais moçambicanos reagiu mal, atitude compreensível. As pessoas têm direito a valorizar os seus filhos para além do que têm em casa ou na rua. É para isso que serve a escola. Todavia, a boa vontade dos docentes, seduzidos por pedagogias centradas num suposto interesse cultural dos alunos, tal qual epidemia sem fronteiras, força escolhas de sentido contrário, o que atesta a necessidade de se repensarem as questões linguísticas nas sociedades pós-coloniais, mesmo que se equacione a hipótese de autonomizar as realidades urbanas das realidades rurais. Estas sociedades, quase nunca auscultadas por si mesmas neste tipo de matérias, poderiam ter direito a expressar-se com liberdade. Portanto, a qualidade da expressão verbal em idioma oficial num país africano pode nem sequer ser o assunto desta crónica. Antes o papel de académicos, intelectuais e demais ideólogos.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro



 

1 comentário:

  1. Adoro ouvir e falar nhungué,apesar de viver em portugal há 31 anos e ter regressado a tete só 1 vez. Sem pruridos,a riqueza cultural e liberdade identitária é muito vasta. Faz parte dos afetos que ficam para a vida e fortalecem a personalidade. O nosso"macaiaia" era nalfabeto, homem humilde e pobre, muitas vezes humilhado pelos crescidos, situação que me indignava quando criança.Só tenho dele lembrança boa.Abraço!

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