Sebastião Salgado
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Enquanto
os pobres começam a formar-se para a vida nos quintais e entre pares nas ruas
dos bairros suburbanos, a educação das crianças de classes médias e altas
recorre a empregadas-amas que delas tomam conta dentro das habitações, nas
saídas a tempo inteiro ou nos intervalos dos infantários. Para as minorias, a
situação tem ainda a vantagem de gerar aproximações inter-raciais desde o
berço. De uma ou de outra forma, ficarão atados para sempre laços afectivos
entre as crianças e quem delas cuida, cujos efeitos, neste contexto, explicam a
diluição das tensões raciais em sociedades fortemente heterogéneas (por razões
de etnias, raças, línguas, religiões, origens, distribuição de riqueza,
campo-cidade, filiações políticas e tudo o mais), como a moçambicana. O fenómeno,
como se sabe, remonta ao tempo colonial. Contudo, para além dos afectos, não
vejo porque não problematizar o assunto de modo friamente técnico. Aí
ressaltam interrogações sobre a qualidade da formação linguística, direito universal
dos povos que alguns podem ter transformado em coisa de brancos. Se o
sotaque e a criatividade, como a vulgarização do desconsegui, são marcas
identitárias apreciáveis, as amas, em geral, falam mal o português, modelando
linguagens que podem durar para a vida das agora crianças. Por exemplo, quando
a ama diz que O canal di bonêcos que êsta criança gôsta é xexento e sês,
a menina ou menino confirmam: Ê xexento e sêssss!!!, crianças que, à
mesa dos pais, podem preferir passar a refeição na esteira estendida no chão da
cozinha, comendo farinha e caril de peixe à mão como e com as suas amas-mães. E
não vale a pena escândalos fingidos. Lares de antigos revolucionários
nacionalistas africanos confirmam a regra. Por mim, se tivesse de criar
descendência por aqui, e podendo pagar, um dos critérios de escolha da segunda
mãe seria o atributo da melhor qualidade possível da candidata ao nível na
expressão verbal em língua oficial (não coincidente com as diversas línguas
nacionais). Não me libertaria de remorsos se passasse à descendência o meu
sofrível português. A alternativa, mais em conta, seria a de optar pela
pedagogia paciente, corrigindo a ama-mãe no dia-a-dia. Há até algum cinismo
entre os que, de bem com a vida (ou, pelo menos, melhor do que a habitual gente
comum), relativizam a importância da língua portuguesa na afirmação social
nestas sociedades cada vez mais concorrenciais. Basta reparar nos trejeitos de
exibicionismo de alguns negros e mestiços que dominam com mestria a língua
oficial, ou julgam dominar (ambas hipóteses são válidas), e nas compensações
sociais que daí retiram ou ambicionam retirar. Por seu lado, os jovens pobres
das periferias urbanas, esses, vão esfrangalhando o sentido de utopias
intelectuais em defesa das línguas nacionais africanas. Se elas devem ser
salvas, devem sê-lo, em primeiro lugar, da crescente rejeição pelas novas
gerações urbanas genuinamente africanas. Não das garras culturais dos
neo-colonizadores eurocêntricos. Não das garras do Ocidente, pau para
todas as recriminações. Por muito que os jovens respeitem as línguas herdadas
das suas tradições familiares, não é menos verdade que procuram confortar-se de
moto próprio no regaço do português, colo de ama que nunca tiveram. É andar
pelos bairros pobres a ouvi-los. É prestar atenção aos recreios das escolas. É
apreciar as falas no animado e poeirento futebol de rua (as muitas ruas sem
alcatrão têm as suas vantagens). De resto, numa troca de palavras informal com
uma docente do pré-escolar e da primária, fiquei a saber que tentou introduzir,
no vocabulário dos alunos, palavras em massena, o idioma dominante na Beira, e
parte dos pais moçambicanos reagiu mal, atitude compreensível. As pessoas têm
direito a valorizar os seus filhos para além do que têm em casa ou na rua. É para
isso que serve a escola. Todavia, a boa vontade dos docentes, seduzidos por
pedagogias centradas num suposto interesse cultural dos alunos, tal qual
epidemia sem fronteiras, força escolhas de sentido contrário, o que atesta a
necessidade de se repensarem as questões linguísticas nas sociedades
pós-coloniais, mesmo que se equacione a hipótese de autonomizar as realidades
urbanas das realidades rurais. Estas sociedades, quase nunca auscultadas por si
mesmas neste tipo de matérias, poderiam ter direito a expressar-se com
liberdade. Portanto, a qualidade da expressão verbal em idioma oficial num país
africano pode nem sequer ser o assunto desta crónica. Antes o
papel de académicos, intelectuais e demais ideólogos.
Gabriel Mithá Ribeiro
Adoro ouvir e falar nhungué,apesar de viver em portugal há 31 anos e ter regressado a tete só 1 vez. Sem pruridos,a riqueza cultural e liberdade identitária é muito vasta. Faz parte dos afetos que ficam para a vida e fortalecem a personalidade. O nosso"macaiaia" era nalfabeto, homem humilde e pobre, muitas vezes humilhado pelos crescidos, situação que me indignava quando criança.Só tenho dele lembrança boa.Abraço!
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