quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pretérito imperfeito.

 

 

 

 




A Sombra do Condor: entrevista com João Pina





 

 
 
 
 
Ao fim de 7 anos de trabalho, João Pina concluiu o seu projecto sobre a Operação Condor. Um levantamento fotográfico dos vestígios de uma operação secreta levada a cabo pelas ditaduras da América Latina que, segundo algumas estimativas, fez 60.000 vítimas durante os três anos em que teve lugar, de 1975 a 1978.
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O resultado final de um périplo fotográfico pela Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Cuba, Paraguai, Estados Unidos e Uruguai será  um livro editado em 3 idiomas diferentes e uma exposição para levar o trabalho de volta aos países envolvidos.
 
 
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Um avião utilizado pelos militares argentinos para lançar oposicionistas de esquerda, vivos,
ao Mar da Prata e ao Atlântico serve agora como objecto publicitário
de uma loja de venda de materiais de construção nos arredores de Buenos Aires.

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P. -  Este projecto sobre a Operação Condor começou há alguns anos. Entre investigação e trabalho de campo, quantos ao certo? Como surgiu a ideia e como foi possível concretizar um projecto tão ambicioso, que envolveu tantos países?
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R. - A ideia surgiu em 2004/2005 enquanto terminava o meu primeiro livro «Por teu Livre Pensamento» sobre ex-presos políticos portugueses, e em que, ao mostrar a vários amigos estrangeiros o trabalho, este ficaram surpreendidos pelo tema e me perguntaram porque não continuaria o trabalho noutros países.  Comecei a investigar melhor a história da região e as ditaduras nos países do cone sul da América viveram dos anos 60 até meados dos anos 80, e foi quando me deparei com a existência da Operação Condor, que é ainda hoje algo muito pouco conhecido mesmo nos países que a viveram. 
Logisticamente, consegui fazer este trabalho graças aos anos em que vivi (e continuarei a viver) na região e que entre trabalhos de "encomenda" para jornais e revistas, podia passar algum tempo nos países em questão a investigar esta história. Finalmente nos últimos dois anos recorrendo a uma plataforma de "crowd-funding" chamada emphas.is pude juntar o dinheiro suficiente para me concentrar neste tema durante alguns meses no terreno e terminei de fotografar em Dezembro de 2012. 
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Casa de banho em Londres 38, um antigo centro de detenção e tortura
do tempo da ditadura de Pinochet, localizado na baixa da cidade de Santiago do Chile.


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P. - Antes de iniciares o trabalho fotográfico, tiveste naturalmente de te documentar, de conhecer o que foi a Operação Condor. Havendo ainda tanta coisa por revelar sobre essa operação, e informação que se conheceu apenas quando ias desenvolvendo a pesquisa, como conseguiste saber onde ir, com que pessoas falar, que arquivos consultar? Foste adaptando o trabalho à medida que ias sabendo mais sobre a Operação Condor?  
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R. - Desde o início a minha ideia não foi fotografar apenas casos do "Condor", mas analisar o que tinha acontecido na região não só durante os anos de 1975 e 1978 que foi quando o Condor esteve oficialmente activo, mas ir a montante e a jusante dessas datas para tentar entender como se tinham reunido as condições para que essa sinistra reunião em Santiago do Chile que deu início ao Condor em Novembro de 75 pudesse ter acontecido. 
Assim, primeiro dediquei-me a estudar e compreender as histórias individuais de cada uma das ditaduras, e depois tentar retratar os efeitos que essas ditaduras tiveram enquanto regimes nacionais e o que aconteceu depois da união dos recursos, e inevitável aumento exponencial da repressão política nos países envolvidos. No meio de tudo isso, ia entrevistando sobreviventes e familiares de desaparecidos que me iam ajudando a traçar o quadro. 
Muito revelador foi também uma entrevista que fiz no Brasil ao Coronel Curió, um coronel retirado do exército brasileiro, que participou directamente na repressão a uma guerrilha opositora brasileira,  e participou também em várias acções do Condor em países da região. Aí consegui compreender de uma forma menos académica  como estava armado o sistema e a forma de participação que houve de uns países noutros. 
A linha principal do trabalho Sobreviventes/Familiares/Lugares de desaparição, foi traçada desde o início; depois fui acrescentando novas situações que foram acontecendo enquanto eu pesquisava, como o início dos julgamentos contra militares na Argentina por crimes contra a humanidade, funerais de desaparecidos encontrados e identificados por equipas de antropologia forense, escavações para procura de desaparecidos na Amazónia brasileira. Todas estas situações continuam "vivas" e em movimento, e por isso continuo atento a elas e eventualmente poderei fotografar ainda mais um pouco. Assim como nos arquivos, uma pista leva a outra, um encontro leva a outro, e desse modo fui e vou descobrindo mais coisas sobre o tema. 
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Detida em Novembro de 1975, a argentina Mirta Clara esteve presa durante seis anos.
O marido foi executado na prisão. Foi torturada enquanto estava grávida do segundo filho, que ainda hoje sofre de distúrbios mentais. Libertada em 1983, vive e trabalha actualmente
em Buenos Aires, onde é advogada de direitos humanos e psicóloga.  
 
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P. - Em que países tiveste mais dificuldades ou deparaste com mais resistências?
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R. - Cada país tem as suas especificidades, e em nenhuma tive resistência ao trabalho que estava a fazer. Apenas algumas situações em que a própria história dos eventos não está bem resolvida dentro da sociedade e como tal tive que "escavar" um pouco mais para chegar onde queria. Mas, em geral, todas as pessoas foram muito abertas,  receberam-me e falaram do que passaram sem imporem limitações ao meu trabalho. Da parte dos Estados sim, institucionalmente existe alguma resistência em abrir estas histórias para investigações, pois foram crimes perpetrados pelo próprio Estado e com muitos dos actores ainda vivos e algumas vezes em posições de poder. Como tal, cada país gere essas resistências de forma diferente, e o interessante neste processo foi entender e tentar conseguir uma forma de poder aceder ao que eu queria dessas instituições sem que elas se assustassem pelo meu objecto de trabalho.
Pelo contrário, o que mais me surpreendeu foi a facilidade de acesso no Paraguai. Nesta última viagem em pouco mais de duas semanas, consegui entrar em prisões ainda em funcionamento, fotografar antigos centros clandestinos de tortura, fotografar arquivos fotográficos, entrevistar pessoas em lugares diferentes do país. Isto, em circunstâncias normais, demoraria vários meses a conseguir. Não estava à espera que o tema de direitos humanos estivesse tão aberto e institucionalizado e o apoio que houve ao meu trabalho foi muito grande, o que me facilitou muito a vida.
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Antigos militares argentinos escondem as suas caras na sessão de julgamento em que são acusados, pelo Estado argentino, da prática de crimes contra a Humanidade
perpetrados no período 1976-1983.


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 P. - Quer nos teus trabalhos sobre os presos político do Estado Novo ou sobre a Reforma Agrária,  quer neste sobre a Operação Condor, há uma linha de continuidade na tua obra, onde a memória ocupa um lugar central. Será correcto qualificar-te como um «fotógrafo da memória»? E nessa captura da memória há alguma intenção cívica, política ou ideológica?
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R. - Eu cresci numa família política e cheia de histórias do passado. Os meus avós maternos passaram muitos anos nas prisões do fascismo português, e nunca conheci o meu avô materno, por isso conheci-o, e continuo a conhecê-lo, pelo que me contavam dele. Para uma criança de 5-6 anos contarem-lhe que o avô que já morreu, esteve preso porque acreditava em ideias diferentes do regime em que vivia, que fugiu de Peniche pendurado numa corda feita de lençóis, e de Caxias num carro blindado que o Hitler tinha oferecido a Salazar, eram histórias maravilhosas e que superavam a maioria dos contos de crianças. 
Naturalmente desenvolvi uma curiosidade por estes temas, e mais tarde consegui entender a importância que essas memórias tinham na minha própria formação como indivíduo, e também que essas memórias criavam em mim uma inquietude que os meus amigos da mesma geração não tinham. Isso foi o que me fez, em primeiro lugar, ir atrás destas histórias e querer fotografar o que restava delas, para, por um lado, poder contribuir que estas não morram com quem as viveu e, ao mesmo tempo, para poder de alguma maneira acalmar a minha inquietude causada pelo facto das pessoas com quem falava nada sabiam do que tinha acontecido num Portugal tão próximo ao nosso presente. 
Dito isto, não acho que seja correcto qualificar-me como um "fotógrafo de memória". A memória é parte do meu trabalho, como o presente e o futuro também o são. Assim como fotografo o "passado", também gosto de cobrir histórias do presente como a Primavera Árabe, ou construir um documento sobre Cuba do ponto de vista do presente mas a pensar nas mudanças do futuro. Gosto de subverter essas dimensões do passado, presente e futuro, acho que isso seria a forma de me definir neste momento.
Existe naturalmente uma intenção cívica e política em todo o meu trabalho. Acredito que é importante dar voz a muitas pessoas que têm histórias extraordinárias e que estas não seriam conhecidas de forma natural. Seja no Afeganistão, na América do Sul ou em Portugal. Como te contei, venho de uma família política, mas não me imaginei nunca a fazer política no activo, por isso acho que a minha participação pode ser usar as minhas ideias para tentar aproximar o leitor de histórias reais. Ideologicamente não acho que tenha nenhuma intenção: em primeiro lugar, porque eu mesmo não me revejo em nenhuma das ideologias dominantes da actualidade, mas acho que a nossa participação cívica enriquece em muito as democracias onde vivemos, e, mesmo sendo um sistema longe de ser perfeito, a democracia é sem dúvida o sistema político em que acredito.
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Restos mortais de dois desaparecidos políticos, no laboratório da Equipa de Antropologia Forense da Argentina, com vista a serem estudados e, se possível, identificados.


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P. - Muitos fotógrafos procuram a memória histórica: Frank Schwere, Paula Luttringer, Peter Herbsein, Ivor Prickett, Pieter Hugo, Steven Laxton, Franziska Vu, Indre Serpytyte, Anna Shteynshleyger, Guillaume Herbaut, Taryn Simon, Ashley Gilbertson… a lista é grande. Mas, ao que sei, nenhum desenvolveu, num só projecto, um trabalho tão vasto e ambicioso como o teu. Conheces alguém que tenha tentado fazer um levantamento tão sistemático da Operação Condor?
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R. - É curioso mencionares tantos nomes, alguns que são uma grande inspiração e outros que nem conheço, e muitos mais poderiam ser mencionados. Sem dúvida nomes como o Gilles Peress, a Susan Meiselas e o Patrick Zackmann têm um papel muito preponderante naquilo que eu acredito que seja uma visão documentalista da História. Não conheço quem tenha abordado fotograficamente a temática do Condor, e menos ainda nos 6 países que a viveram. Esse foi um dos motivos pelos quais  decidi investir tanto tempo e tantos recursos para fazer este trabalho, pois não havia quem tivesse fotografado todas as ditaduras com uma linha apenas. 
Existem trabalhos fotográficos extraordinários sobre as ditaduras individualmente, sobretudo de fotógrafos da época que conseguiram ir fotografando as ditaduras a desenrolarem-se nos seus próprios países (como o Luis Navarro no Chile, o Aurelio Gonzales no Uruguai, entre outros), que, pelo facto destes fotógrafos não viverem nos países com capacidade económica para que a sua obra seja conhecida, nunca receberam o crédito pelo trabalho que foram desenvolvendo ao longo das suas vidas. 
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Detalhe das fichas de vários presos políticos estrangeiros, encontradas nos arquivos da polícia política nas imediações de Assunção, Paraguai, conhecidos como «arquivos do terror».


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P. - No entanto, e à semelhança do que em certa medida ocorreu na História, não há o risco de esta «fotografia da memória» se converter numa «moda»? E, sendo assim, pela sua efemeridade acabar, no final, por contrariar os seus propósitos cívicos?    
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R. - Não acho que a fotografia de memória seja a única forma de abordar estas temáticas, e seguramente que a História e o documentalismo não se devem servir apenas desta linguagem para contar o aconteceu. De forma a contrariar um pouco esta tendência, tenho tentado, seja com o recurso a imagens "reais" de arquivos, seja pela voz das pessoas que entrevisto, criar uma linguagem que não se prenda exclusivamente na fotografia do presente que remete para o passado. 
Mais do que a fotografia da memória (e o mesmo acontece com outros géneros de fotografia), os propósitos cívicos começam a ser contrariados quando os fotógrafos têm pretensões de serem celebridades eles mesmos. Isso é o que para mim vai corrompendo as ideias que muitos de nós defendemos e que nos levam a fazer este trabalho. 
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Marco Aurélio Guimarães, patologista forense,
transporta consigo o que aparentam ser os restos mortais de um guerrilheiro araguaia.

 

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P. - Aqui, como nos outros projectos, há um propósito documental ou pretendes ir além dele? Mas, se formos além do puro registo dos factos, não existe o risco de uma certa «estetização do sofrimento», a partir do reencontro com memórias pessoais tão dolorosas?
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R. - Em geral, tento não entrar em grandes discussões sobre semiótica, e o papel da fotografia. Considerando-me mais, para usar uma linguagem de época, um "operário fotográfico" do que um "intelectual fotográfico". Tenho naturalmente preocupações de não usar gratuitamente o sofrimento que as pessoas passam para com isso criar imagens, até porque vivemos numa altura em que a violência é tão presente que corremos o risco de  a banalizarmos  e de as pessoas que olham para as fotografias ficarem imunes a ela. Ao mesmo tempo, ao estarmos no terreno e vivermos uma ínfima parte de algumas dessas coisas, queremos naturalmente usar a fotografia como uma forma de denúncia. Isto, aliado ao facto da maioria das pessoas que fotografamos serem vítimas também elas à procura de uma explicação para o que lhes acontece, faz com que o desejo de denunciar seja um eixo comum quando se trabalham temas tão dolorosos. A minha preocupação com essa anestesia à violência preocupa-me mais do que a discussão à volta da estética do sofrimento.
Do que nos serviriam imagens cujo leitor a primeira coisa que faz ao olhar para elas seja desviar o olhar, por estarem mal compostas, serem demasiado gráficas, ou com problemas técnicos graves?  Essa estetização do sofrimento, não me incomoda. Pelo contrário, acho que uma imagem para ser eficaz tem de ser forte, tanto estética como tecnicamente. Seria como escrever uma crónica sobre uma guerra com erros de ortografia. A estética e a técnica são dois instrumentos que temos para criar imagens, e eu, como espectador, prefiro olhar para uma imagem da guerra na Síria que seja horrivelmente bela do que uma que não me crie nenhum impacto.
 
 
 
Entrevista de António Araújo






 

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