A Sombra do Condor: entrevista com João Pina
Ao fim de 7 anos de trabalho, João Pina concluiu o seu projecto sobre a Operação Condor. Um levantamento
fotográfico dos vestígios de uma operação secreta levada a
cabo pelas ditaduras da América Latina que, segundo algumas estimativas,
fez 60.000 vítimas durante os três anos em que teve lugar, de 1975 a 1978.
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O resultado final de um périplo fotográfico pela Argentina,
Brasil, Bolívia, Chile, Cuba, Paraguai, Estados Unidos e Uruguai
será um livro editado em 3 idiomas diferentes e uma exposição para levar
o trabalho de volta aos países envolvidos.
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P. - Este projecto sobre a Operação
Condor começou há alguns anos. Entre investigação e trabalho de campo,
quantos ao certo? Como surgiu a ideia e como foi possível concretizar um
projecto tão ambicioso, que envolveu tantos países?
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R. - A ideia
surgiu em 2004/2005 enquanto terminava o meu primeiro livro «Por teu Livre
Pensamento» sobre ex-presos políticos portugueses, e em que, ao mostrar a
vários amigos estrangeiros o trabalho, este ficaram surpreendidos pelo tema e me
perguntaram porque não continuaria o trabalho noutros países. Comecei a
investigar melhor a história da região e as ditaduras nos países do cone sul da
América viveram dos anos 60 até meados dos anos 80, e foi quando me deparei com
a existência da Operação Condor, que é ainda hoje algo muito pouco conhecido
mesmo nos países que a viveram.
Logisticamente, consegui fazer este trabalho graças
aos anos em que vivi (e continuarei a viver) na região e que entre trabalhos de
"encomenda" para jornais e revistas, podia passar algum tempo nos
países em questão a investigar esta história. Finalmente nos últimos dois anos
recorrendo a uma plataforma de "crowd-funding" chamada emphas.is pude juntar o
dinheiro suficiente para me concentrar neste tema durante alguns meses no
terreno e terminei de fotografar em Dezembro de 2012.
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P. - Antes de iniciares o trabalho fotográfico, tiveste naturalmente de te
documentar, de conhecer o que foi a Operação Condor. Havendo ainda tanta coisa
por revelar sobre essa operação, e informação que se conheceu apenas
quando ias desenvolvendo a pesquisa, como conseguiste saber onde ir, com que
pessoas falar, que arquivos consultar? Foste adaptando o trabalho à medida que
ias sabendo mais sobre a Operação Condor?
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R. - Desde o início a minha ideia não foi fotografar apenas
casos do "Condor", mas analisar o que tinha acontecido na região não
só durante os anos de 1975 e 1978 que foi quando o Condor esteve oficialmente
activo, mas ir a montante e a jusante dessas datas para tentar entender como se
tinham reunido as condições para que essa sinistra reunião em Santiago do Chile
que deu início ao Condor em Novembro de 75 pudesse ter acontecido.
Assim, primeiro dediquei-me a estudar e compreender as
histórias individuais de cada uma das ditaduras, e depois tentar retratar os
efeitos que essas ditaduras tiveram enquanto regimes nacionais e o que
aconteceu depois da união dos recursos, e inevitável aumento exponencial da
repressão política nos países envolvidos. No meio de tudo isso, ia
entrevistando sobreviventes e familiares de desaparecidos que me iam ajudando a
traçar o quadro.
Muito revelador foi também uma entrevista que fiz no
Brasil ao Coronel Curió, um coronel retirado do exército brasileiro, que
participou directamente na repressão a uma guerrilha opositora brasileira,
e participou também em várias acções do Condor em países da região. Aí consegui
compreender de uma forma menos académica como estava armado o sistema e a
forma de participação que houve de uns países noutros.
A linha principal do trabalho
Sobreviventes/Familiares/Lugares de desaparição, foi traçada desde o início;
depois fui acrescentando novas situações que foram acontecendo enquanto eu
pesquisava, como o início dos julgamentos contra militares na Argentina por
crimes contra a humanidade, funerais de desaparecidos encontrados e
identificados por equipas de antropologia forense, escavações para procura de
desaparecidos na Amazónia brasileira. Todas estas situações continuam
"vivas" e em movimento, e por isso continuo atento a elas e
eventualmente poderei fotografar ainda mais um pouco. Assim como nos arquivos,
uma pista leva a outra, um encontro leva a outro, e desse modo fui e vou descobrindo
mais coisas sobre o tema.
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P. - Em que países tiveste mais dificuldades ou deparaste com mais
resistências?
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R. - Cada país tem as suas especificidades, e em nenhuma
tive resistência ao trabalho que estava a fazer. Apenas algumas situações em
que a própria história dos eventos não está bem resolvida dentro da sociedade e
como tal tive que "escavar" um pouco mais para chegar onde queria.
Mas, em geral, todas as pessoas foram muito abertas, receberam-me e falaram do
que passaram sem imporem limitações ao meu trabalho. Da parte dos Estados sim,
institucionalmente existe alguma resistência em abrir estas histórias para
investigações, pois foram crimes perpetrados pelo próprio Estado e com muitos
dos actores ainda vivos e algumas vezes em posições de poder. Como tal, cada
país gere essas resistências de forma diferente, e o interessante neste
processo foi entender e tentar conseguir uma forma de poder aceder ao que eu
queria dessas instituições sem que elas se assustassem pelo meu objecto de
trabalho.
Pelo contrário, o que mais me surpreendeu foi a
facilidade de acesso no Paraguai. Nesta última viagem em pouco mais de duas
semanas, consegui entrar em prisões ainda em funcionamento, fotografar antigos
centros clandestinos de tortura, fotografar arquivos fotográficos, entrevistar
pessoas em lugares diferentes do país. Isto, em circunstâncias normais, demoraria
vários meses a conseguir. Não estava à espera que o tema de direitos
humanos estivesse tão aberto e institucionalizado e o apoio que houve ao meu
trabalho foi muito grande, o que me facilitou muito a vida.
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Antigos militares argentinos escondem as suas caras na sessão de julgamento em que são acusados, pelo Estado argentino, da prática de crimes contra a Humanidade
perpetrados no período 1976-1983.
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P. - Quer nos teus trabalhos sobre os presos político do Estado Novo ou
sobre a Reforma Agrária, quer neste sobre a Operação Condor, há uma
linha de continuidade na tua obra, onde a memória ocupa um lugar central.
Será correcto qualificar-te como um «fotógrafo da memória»? E nessa captura
da memória há alguma intenção cívica, política ou ideológica?
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R. - Eu cresci numa família política e cheia de histórias
do passado. Os meus avós maternos passaram muitos anos nas prisões do fascismo
português, e nunca conheci o meu avô materno, por isso conheci-o, e continuo a
conhecê-lo, pelo que me contavam dele. Para uma criança de 5-6 anos
contarem-lhe que o avô que já morreu, esteve preso porque acreditava em ideias
diferentes do regime em que vivia, que fugiu de Peniche pendurado numa corda
feita de lençóis, e de Caxias num carro blindado que o Hitler tinha oferecido a
Salazar, eram histórias maravilhosas e que superavam a maioria dos contos de
crianças.
Naturalmente desenvolvi uma curiosidade por estes
temas, e mais tarde consegui entender a importância que essas memórias tinham
na minha própria formação como indivíduo, e também que essas memórias criavam
em mim uma inquietude que os meus amigos da mesma geração não tinham. Isso foi
o que me fez, em primeiro lugar, ir atrás destas histórias e querer fotografar o
que restava delas, para, por um lado, poder contribuir que estas não morram com
quem as viveu e, ao mesmo tempo, para poder de alguma maneira acalmar a minha
inquietude causada pelo facto das pessoas com quem falava nada sabiam do que
tinha acontecido num Portugal tão próximo ao nosso presente.
Dito isto, não acho que seja correcto qualificar-me
como um "fotógrafo de memória". A memória é parte do meu trabalho,
como o presente e o futuro também o são. Assim como fotografo o
"passado", também gosto de cobrir histórias do presente como a
Primavera Árabe, ou construir um documento sobre Cuba do ponto de vista do
presente mas a pensar nas mudanças do futuro. Gosto de subverter essas
dimensões do passado, presente e futuro, acho que isso seria a forma de me
definir neste momento.
Existe naturalmente uma intenção cívica e política em
todo o meu trabalho. Acredito que é importante dar voz a muitas pessoas que têm
histórias extraordinárias e que estas não seriam conhecidas de forma natural.
Seja no Afeganistão, na América do Sul ou em Portugal. Como te contei, venho
de uma família política, mas não me imaginei nunca a fazer política no activo,
por isso acho que a minha participação pode ser usar as minhas ideias para
tentar aproximar o leitor de histórias reais. Ideologicamente não acho que
tenha nenhuma intenção: em primeiro lugar, porque eu mesmo não me revejo em
nenhuma das ideologias dominantes da actualidade, mas acho que a nossa
participação cívica enriquece em muito as democracias onde vivemos, e, mesmo
sendo um sistema longe de ser perfeito, a democracia é sem dúvida o sistema
político em que acredito.
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Restos mortais de dois desaparecidos políticos, no laboratório da Equipa de Antropologia Forense da Argentina, com vista a serem estudados e, se possível, identificados.
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P. - Muitos fotógrafos procuram a memória histórica: Frank Schwere, Paula
Luttringer, Peter Herbsein, Ivor Prickett, Pieter Hugo, Steven Laxton,
Franziska Vu, Indre Serpytyte, Anna Shteynshleyger, Guillaume Herbaut, Taryn
Simon, Ashley Gilbertson… a lista é grande. Mas, ao que sei, nenhum
desenvolveu, num só projecto, um trabalho tão vasto e ambicioso como o teu. Conheces
alguém que tenha tentado fazer um levantamento tão sistemático da Operação
Condor?
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R. - É curioso mencionares tantos nomes, alguns que são uma
grande inspiração e outros que nem conheço, e muitos mais poderiam ser
mencionados. Sem dúvida nomes como o Gilles Peress, a Susan Meiselas e o
Patrick Zackmann têm um papel muito preponderante naquilo que eu acredito que
seja uma visão documentalista da História. Não conheço quem tenha abordado
fotograficamente a temática do Condor, e menos ainda nos 6 países que a
viveram. Esse foi um dos motivos pelos quais decidi investir tanto tempo e
tantos recursos para fazer este trabalho, pois não havia quem tivesse fotografado
todas as ditaduras com uma linha apenas.
Existem trabalhos fotográficos extraordinários sobre
as ditaduras individualmente, sobretudo de fotógrafos da época que conseguiram
ir fotografando as ditaduras a desenrolarem-se nos seus próprios países (como o
Luis Navarro no Chile, o Aurelio Gonzales no Uruguai, entre outros), que, pelo
facto destes fotógrafos não viverem nos países com capacidade económica para
que a sua obra seja conhecida, nunca receberam o crédito pelo trabalho que foram
desenvolvendo ao longo das suas vidas.
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Detalhe das fichas de vários presos políticos estrangeiros, encontradas nos arquivos da polícia política nas imediações de Assunção, Paraguai, conhecidos como «arquivos do terror».
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P. - No entanto, e à semelhança do que em certa
medida ocorreu na História, não há o risco de esta «fotografia da memória» se
converter numa «moda»? E, sendo assim, pela sua efemeridade acabar, no final,
por contrariar os seus propósitos cívicos?
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R. - Não acho que a fotografia de memória seja a única
forma de abordar estas temáticas, e seguramente que a História e o
documentalismo não se devem servir apenas desta linguagem para contar o
aconteceu. De forma a contrariar um pouco esta tendência, tenho tentado, seja
com o recurso a imagens "reais" de arquivos, seja pela voz das
pessoas que entrevisto, criar uma linguagem que não se prenda exclusivamente na
fotografia do presente que remete para o passado.
Mais do que a fotografia da memória (e o mesmo acontece
com outros géneros de fotografia), os propósitos cívicos começam a ser
contrariados quando os fotógrafos têm pretensões de serem celebridades eles
mesmos. Isso é o que para mim vai corrompendo as ideias que muitos de nós
defendemos e que nos levam a fazer este trabalho.
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Marco Aurélio Guimarães, patologista forense,
transporta consigo o que aparentam ser os restos mortais de um guerrilheiro araguaia.
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P. - Aqui, como nos outros projectos, há um propósito documental ou pretendes
ir além dele? Mas, se formos além do puro registo dos factos, não existe o
risco de uma certa «estetização do sofrimento», a partir do reencontro com
memórias pessoais tão dolorosas?
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R. - Em geral, tento não entrar em grandes discussões
sobre semiótica, e o papel da fotografia. Considerando-me mais, para usar uma
linguagem de época, um "operário fotográfico" do que um
"intelectual fotográfico". Tenho naturalmente preocupações de não
usar gratuitamente o sofrimento que as pessoas passam para com isso criar
imagens, até porque vivemos numa altura em que a violência é tão presente que
corremos o risco de a banalizarmos e de as pessoas que olham para as fotografias
ficarem imunes a ela. Ao mesmo tempo, ao estarmos no terreno e vivermos uma ínfima
parte de algumas dessas coisas, queremos naturalmente usar a fotografia
como uma forma de denúncia. Isto, aliado ao facto da maioria das pessoas que
fotografamos serem vítimas também elas à procura de uma explicação para o que
lhes acontece, faz com que o desejo de denunciar seja um eixo comum quando se
trabalham temas tão dolorosos. A minha preocupação com essa anestesia à
violência preocupa-me mais do que a discussão à volta da estética do
sofrimento.
Do que nos
serviriam imagens cujo leitor a primeira coisa que faz ao olhar para elas seja
desviar o olhar, por estarem mal compostas, serem demasiado gráficas, ou com
problemas técnicos graves? Essa estetização do sofrimento, não me
incomoda. Pelo contrário, acho que uma imagem para ser eficaz tem de ser forte,
tanto estética como tecnicamente. Seria como escrever uma crónica sobre uma guerra
com erros de ortografia. A estética e a técnica são dois instrumentos que temos
para criar imagens, e eu, como espectador, prefiro olhar para uma imagem da
guerra na Síria que seja horrivelmente bela do que uma que não me crie nenhum
impacto.
Entrevista de António Araújo
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