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Enganos
do governo: autoridade e substituição
em Medida
por Medida de William Shakespeare
I
Medida
por Medida é habitualmente descrita como uma
peça-problema de Shakespeare. Podemos dizer que Medida por Medida problematiza um fenómeno político-jurídico: a
substituição do governo e da lei. O ponto de partida desta peça é uma típica delegação
provisória do poder. Um governante, o Duque de Viena, prepara-se discretamente
para sair da cidade em missão diplomática e precisa de escolher um substituto
que assuma o governo durante a sua ausência. Na linguagem de hoje, diríamos que
o impedimento do Duque obriga à nomeação de um interino. Viena não pode ficar sem governo para aplicar a lei aos
cidadãos. Torna-se por isso indispensável designar um governante transitório
que cuide da execução das leis, impedindo a cidade de cair na desordem e
licenciosidade.
Ao contrário das nossas sociedades
políticas que definem no plano do Direito quem é que pode assumir a condição de
interino e através de que formas, neste caso a escolha compete integralmente ao
Duque. É o Duque quem escolhe o seu próprio interino. Porém, ao contrário de
nós que também não confundimos o titular do cargo e do seu substituto – o
interino é sempre e só um interino, exercendo competências limitadas de
substituição –, o Duque de Viena não ignora que a cidade passará a ser
governada por outro. Mesmo que transitoriamente, o poder do
Duque ficará entregue nas mãos de outro e será exercido por outro.
No primeiro diálogo com Éscalo, logo na
abertura da peça, o Duque de Viena torna claros os termos de um dilema, que
pode ser caracterizado pela contradição que sempre existe entre a teoria e a
prática do poder. Ao perguntar a Éscalo se ele aceita a escolha de Ângelo, o
Duque não quer saber se este fará boa figura,
nem se procederá com zelo e competência. A sua preocupação é que Ângelo possa
fazer bem a figura do Duque, encarnando assim “o seu próprio poder”:
–
Parece-vos que ele fará bem a minha figura?
Digo-vos
que com especial cuidado
O
elegemos para velar a nossa ausência,
Usar
o nosso terror, vestir o nosso amor,
E
dispor no seu mando de todas as artes
Do
nosso próprio poder.
Visto desta perspectiva, Ângelo é um fiel
reprodutor da vontade do Duque, de quem recebeu o cargo para ser “inteiro” como
ele, para usar do “nosso terror” e do “nosso amor”, para aplicar a “pena de
morte” e o “perdão em Viena”. Ou seja, para se servir de todas as prerrogativas
que associamos ao governo do Estado: punir, castigar, perdoar, proteger. Por
isso, a medida de Ângelo só poderia ser a mesma medida do Duque. Eis neste
aspecto a consumação da substituição legal entre os dois.
Mas esta insistência do Duque nas
“artes” que vêm com o governo já nos revela aquilo que mais o preocupa. Ângelo,
o substituto, não recebeu um governo que pudesse proclamar como seu mas um
governo alheio. O Duque cedeu o governo a Ângelo. Para aquilo que mais importa,
é Ângelo que agora passa, de facto, a exercer
o governo. A entrega a um delegado temporário está carregada de significado
político e jurídico. Ângelo, não o Duque, assumirá a partir daí, visível e publicamente,
as responsabilidades desse governo. Pedir-lhe-ão contas a ele. E será ele o responsável
por aplicar as leis e por distribuir justiça ou injustiça em Viena, pois não
encontramos aqui qualquer separação moderna entre o poder executivo e o poder judicial:
o governante é ao mesmo tempo o mais alto magistrado da cidade. Há um só poder, como há um só rosto do poder. O poder de punir, de
reprimir, de julgar. Este poder, na sua visibilidade e na sua presença, existe
para ser exercido com todos os custos e sacrifícios inevitáveis. Terá o
delegado Ângelo melhores condições do que o Duque para “no seu mando dispor de todas as artes do poder”? Terá o Duque
escolhido Ângelo para este realizar aquilo de que o Duque não é capaz: o
exercício e a decisão difícil do governo?
A ambiguidade de Medida por Medida enquanto teatro sobre a substituição do poder decorre
destas perguntas. Pode alguém que vinha exercendo o governo de pleno direito furtar-se
a exercê-lo através de um acto forjado de substituição?
II
O diálogo inicial com Éscalo,
compreendemo-lo agora, era essencialmente retórico. O dilema do Duque não consistia
em assegurar que Ângelo cumpriria bem na sua ausência. Pois ficamos a saber que
a saída do Duque foi uma encenação. O Duque afinal não saiu, permaneceu em
Viena e disfarçou-se de frade para poder acompanhar a acção do substituto Ângelo.
O Duque quer testar menos Ângelo do que o povo. Trata-se de outro efeito
resultante da substituição política e jurídica. A transferência do governo para
o delegado não passa de uma hábil estratégia política do Duque, que pretende
afastar-se dos “holofotes” para escapar momentaneamente às consequências do
governo.
Ao fim de vários anos de domínio, Viena está
afundada na libertinagem e na indisciplina. As leis não são respeitadas. Os
costumes estão dissolutos. Mais do que nunca, Viena precisa de governo. Para alterar
este estado de coisas, será preciso uma força tal que restitua o sentido da lei
e da obediência, que proíba e sancione a “lascívia”, como fará mais tarde Ângelo
quando condena Cláudio.
Chegados aqui, é difícil evitar um
paralelo entre esta Viena em decomposição, cujas leis duras e severas se
deparam com uma realidade licenciosa, e os nossos estados democráticos que
também possuem leis duras e severas e também descobriram o desregramento.
Temos
decretos duros e leis apertadas,
Bons
freios e bridões em pilecas rebeldes,
Que
nestes anos deixámos fugir da mão.
“Que nestes anos deixámos fugir da mão”.
O Duque está, pois, cada vez mais afastado do povo, cada vez mais isolado nas
vestes formais do seu poder com que não parece confortável. Mas, sobretudo, os
“bons freios” perderam-se. A busca de um disfarce e a transferência do poder
para Ângelo denunciam o fracasso de uma governação impopular:
Amo
o povo,
Mas
não gosto de me exibir diante deles.
Sabe
que amei sempre a vida retirada,
E
tive em fraca conta estar em assembleias.
O Duque confessa-se. Incapaz de
governar, de pôr ordem na cidade, de fazer cumprir decretos e leis, e agora escondido,
quais são os caminhos que lhe restam? Poderia demitir-se, renunciar ao seu
cargo, para usarmos a nossa linguagem democrática, mas estaria aí uma confissão
imperdoável de derrota. Ou poderia endurecer o seu poder com uma nova e mais
implacável presença, mas passaria a ser visto como um abominável tirano
perdendo todo o respeito e afecto que ainda sobrasse do povo.
A verdade, contudo, é que o Duque opta por
uma terceira estratégia, recorrendo a um delegado com reputação de “austero”
para impor leis mais duras a um povo que tem vivido às “largas”. Ângelo,
voltamos ao nosso paralelo com o presente, será o equivalente às delegações de
funcionários internacionais (do FMI, da Comissão Europeia) que na Europa deste
tempo obrigam os governos de estados endividados a ser “austeros” e impor “leis
mais duras”? A psicologia autoritária de Ângelo é o trunfo de que o fraco Duque
necessita para restaurar a ordem e a licença
em Viena, para fazer a justiça rigorosa e a austeridade, sem as quais o poder pode soçobrar. É o Duque, de
resto, que expressamente o admite:
Já
que foi erro meu dar largas ao povo,
Era
grande tirania açoitá-los e moê-los
[…]
Foi por isso, meu padre,
Que
entreguei a Ângelo este cargo.
E
escondido no meu nome ele cumprirá,
Sem
que vá a minha autoridade a essa luta
Ouvir
calúnias.
Este artifício do Duque não deixa de surpreender
pela sua extraordinária sinceridade e actualidade. Os políticos que conhecemos
nas nossas democracias desejam menos escapar ao estatuto do poder, de cuja aura
naturalmente precisam, do que às dificuldades de exercer o poder contra o povo. Sabem que o povo não
perdoa aos que perdem o seu respeito. O Duque encontra-se na mesmíssima posição
daqueles governantes democráticos que estão mais disponíveis para a indulgência,
para a permissividade, para distribuir favores e prebendas, como poderíamos
dizer nos nossos dias, do que para a face mais agressiva e drástica do poder.
Ângelo afigura-se por isso uma via perfeita para o Duque governar por
interposta pessoa, protegendo de qualquer maneira as vestes da sua autoridade –
“sem que vá a minha autoridade a essa luta ouvir calúnias”. Esta frase é
deveras importante. As ditas “calúnias” a que seria poupada a “autoridade” do
Duque são o julgamento do povo, que seria só dirigido contra o delegado:
E
o novo delegado do nosso Duque –
Seja
por falta ou por fogo da novidade,
Ou
por ser o corpo do Estado
Um
cavalo para o governante montar,
E
esse, acabado de sentar, para dizer
Quem
manda, dá-lhe logo a espora,
Seja
por estar a tirania no seu posto,
Ou
apenas a vaidade ter enchido o lugar.
III
Será então legítima esta estratégia com
que o Duque visa endossar provisoriamente o poder a fim de se poupar a si mesmo?
É curioso que, em O Príncipe, Maquiavel afirma que sim. Segundo conta o florentino, depois de
conquistar a Romagna Cesare Borgia deparou-se com um território dividido e
desgovernado que era necessário pacificar. Em 1501, Borgia nomeou o delegado
Remirro de Orco, conhecido pelo seu carácter enérgico e cruel, à semelhança do Ângelo
de Medida por Medida, e a quem
concedeu plenos poderes para impor a ordem. Como o delegado fosse bem-sucedido,
Borgia arranjou maneira de concentrar em Orco a responsabilidade por todos
esses actos violentos e cruéis, libertando a sua autoridade da revolta popular
que fatalmente se seguiria. Mas Borgia sabia que o ódio na cidade mais tarde ou
mais cedo acabaria por resvalar. O seu governo bem quis fugir às
responsabilidades pesadas do governo. Mas assim que teve oportunidade, exibiu a
cabeça de Orco na praça pública de Cesena a 26 de Dezembro de 1502, de modo de suavizar
e impressionar o povo. Acabou por conseguir.
Esta aproximação histórica, a que muitos
têm recorrido para explicar o teatro de Medida
por Medida, defende que o Duque
de Viena manifesta a mesma premeditação do príncipe maquiavélico. E, no
entanto, tal como nos mostra a intrincada teia de Medida por Medida, o plano inicial com que o Duque quis fugir do
governo e da censura dos homens falha inexoravelmente. A partir do momento em
que, disfarçado de frade, o Duque vai percebendo que Ângelo executa cegamente a
lei em Viena, a fuga do Duque revela-se frustrada. Na sua identidade de frade,
o Duque vai interferindo de múltiplas maneiras na aplicação da lei que condena
Cláudio. Ângelo mostra-se um fracasso como delegado; para o Duque, sair do
poder não é simplesmente possível. E é o Duque que é obrigado, no final desta
peça, ao próprio gesto a que tentou escapar: o exercício do governo. Para o
Duque de nada valeu esconder-se atrás do delegado, transferir para Ângelo a
solidão áspera da governação, evitar o embate com o povo. Essas são ambições irrealizáveis.
Com todas as suas ambiguidades e
indecisões, Medida por Medida possibilita,
pois, uma leitura anti-maquiavélica. Se o governo existe para ser exercido, não
é somente impossível fugir ao seu estatuto, à imagem do poder. É também inviável
fugir à responsabilidade que vem com
o exercício do governo. Correndo o risco de extremarmos a analogia com o
presente, pensemos nas nossas democracias, que, dir-se-á, passaram a ser
governadas nesta década por delegações de substitutos. Sabendo que o seu poder
é provisório, poderão estes reservar-se o direito de serem ríspidos e punitivos
contra uma sociedade acusada, certa ou erradamente, de viver como a Viena desta
peça. Os políticos eleitos destas democracias impopulares podem aspirar a
esconder-se por detrás dos novos delegados, na expectativa de serem
publicamente poupados ao severo julgamento popular.
Se o fizerem, mais tarde ou mais cedo irão
perceber o seu fútil engano e poderão talvez experimentar a mesma medida, o
mesmo destino do Duque de Viena.
Lisboa, 2012
Pedro Lomba
Pedro Lomba
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