terça-feira, 14 de maio de 2013

Medida por Medida.




 
 
.
.
 
 
.
 
Enganos do governo: autoridade e substituição
em Medida por Medida de William Shakespeare

 

 

 

I

 

Medida por Medida é habitualmente descrita como uma peça-problema de Shakespeare. Podemos dizer que Medida por Medida problematiza um fenómeno político-jurídico: a substituição do governo e da lei. O ponto de partida desta peça é uma típica delegação provisória do poder. Um governante, o Duque de Viena, prepara-se discretamente para sair da cidade em missão diplomática e precisa de escolher um substituto que assuma o governo durante a sua ausência. Na linguagem de hoje, diríamos que o impedimento do Duque obriga à nomeação de um interino. Viena não pode ficar sem governo para aplicar a lei aos cidadãos. Torna-se por isso indispensável designar um governante transitório que cuide da execução das leis, impedindo a cidade de cair na desordem e licenciosidade.

 

Ao contrário das nossas sociedades políticas que definem no plano do Direito quem é que pode assumir a condição de interino e através de que formas, neste caso a escolha compete integralmente ao Duque. É o Duque quem escolhe o seu próprio interino. Porém, ao contrário de nós que também não confundimos o titular do cargo e do seu substituto – o interino é sempre e só um interino, exercendo competências limitadas de substituição –, o Duque de Viena não ignora que a cidade passará a ser governada por outro. Mesmo que transitoriamente, o poder do Duque ficará entregue nas mãos de outro e será exercido por outro.

 

No primeiro diálogo com Éscalo, logo na abertura da peça, o Duque de Viena torna claros os termos de um dilema, que pode ser caracterizado pela contradição que sempre existe entre a teoria e a prática do poder. Ao perguntar a Éscalo se ele aceita a escolha de Ângelo, o Duque não quer saber se este fará boa figura, nem se procederá com zelo e competência. A sua preocupação é que Ângelo possa fazer bem a figura do Duque, encarnando assim “o seu próprio poder”:

 

– Parece-vos que ele fará bem a minha figura?

Digo-vos que com especial cuidado

O elegemos para velar a nossa ausência,

Usar o nosso terror, vestir o nosso amor,

E dispor no seu mando de todas as artes

Do nosso próprio poder.

 

Visto desta perspectiva, Ângelo é um fiel reprodutor da vontade do Duque, de quem recebeu o cargo para ser “inteiro” como ele, para usar do “nosso terror” e do “nosso amor”, para aplicar a “pena de morte” e o “perdão em Viena”. Ou seja, para se servir de todas as prerrogativas que associamos ao governo do Estado: punir, castigar, perdoar, proteger. Por isso, a medida de Ângelo só poderia ser a mesma medida do Duque. Eis neste aspecto a consumação da substituição legal entre os dois.

 

Mas esta insistência do Duque nas “artes” que vêm com o governo já nos revela aquilo que mais o preocupa. Ângelo, o substituto, não recebeu um governo que pudesse proclamar como seu mas um governo alheio. O Duque cedeu o governo a Ângelo. Para aquilo que mais importa, é Ângelo que agora passa, de facto, a exercer o governo. A entrega a um delegado temporário está carregada de significado político e jurídico. Ângelo, não o Duque, assumirá a partir daí, visível e publicamente, as responsabilidades desse governo. Pedir-lhe-ão contas a ele. E será ele o responsável por aplicar as leis e por distribuir justiça ou injustiça em Viena, pois não encontramos aqui qualquer separação moderna entre o poder executivo e o poder judicial: o governante é ao mesmo tempo o mais alto magistrado da cidade. Há um só poder, como há um só rosto do poder. O poder de punir, de reprimir, de julgar. Este poder, na sua visibilidade e na sua presença, existe para ser exercido com todos os custos e sacrifícios inevitáveis. Terá o delegado Ângelo melhores condições do que o Duque para “no seu mando dispor de todas as artes do poder”? Terá o Duque escolhido Ângelo para este realizar aquilo de que o Duque não é capaz: o exercício e a decisão difícil do governo?

 

A ambiguidade de Medida por Medida enquanto teatro sobre a substituição do poder decorre destas perguntas. Pode alguém que vinha exercendo o governo de pleno direito furtar-se a exercê-lo através de um acto forjado de substituição?

 

II

 

O diálogo inicial com Éscalo, compreendemo-lo agora, era essencialmente retórico. O dilema do Duque não consistia em assegurar que Ângelo cumpriria bem na sua ausência. Pois ficamos a saber que a saída do Duque foi uma encenação. O Duque afinal não saiu, permaneceu em Viena e disfarçou-se de frade para poder acompanhar a acção do substituto Ângelo. O Duque quer testar menos Ângelo do que o povo. Trata-se de outro efeito resultante da substituição política e jurídica. A transferência do governo para o delegado não passa de uma hábil estratégia política do Duque, que pretende afastar-se dos “holofotes” para escapar momentaneamente às consequências do governo.

 

Ao fim de vários anos de domínio, Viena está afundada na libertinagem e na indisciplina. As leis não são respeitadas. Os costumes estão dissolutos. Mais do que nunca, Viena precisa de governo. Para alterar este estado de coisas, será preciso uma força tal que restitua o sentido da lei e da obediência, que proíba e sancione a “lascívia”, como fará mais tarde Ângelo quando condena Cláudio.

 

Chegados aqui, é difícil evitar um paralelo entre esta Viena em decomposição, cujas leis duras e severas se deparam com uma realidade licenciosa, e os nossos estados democráticos que também possuem leis duras e severas e também descobriram o desregramento.

 

Temos decretos duros e leis apertadas,

Bons freios e bridões em pilecas rebeldes,         

Que nestes anos deixámos fugir da mão.

 

“Que nestes anos deixámos fugir da mão”. O Duque está, pois, cada vez mais afastado do povo, cada vez mais isolado nas vestes formais do seu poder com que não parece confortável. Mas, sobretudo, os “bons freios” perderam-se. A busca de um disfarce e a transferência do poder para Ângelo denunciam o fracasso de uma governação impopular:

 

Amo o povo,

Mas não gosto de me exibir diante deles.

Sabe que amei sempre a vida retirada,

E tive em fraca conta estar em assembleias.

 

O Duque confessa-se. Incapaz de governar, de pôr ordem na cidade, de fazer cumprir decretos e leis, e agora escondido, quais são os caminhos que lhe restam? Poderia demitir-se, renunciar ao seu cargo, para usarmos a nossa linguagem democrática, mas estaria aí uma confissão imperdoável de derrota. Ou poderia endurecer o seu poder com uma nova e mais implacável presença, mas passaria a ser visto como um abominável tirano perdendo todo o respeito e afecto que ainda sobrasse do povo.

 

A verdade, contudo, é que o Duque opta por uma terceira estratégia, recorrendo a um delegado com reputação de “austero” para impor leis mais duras a um povo que tem vivido às “largas”. Ângelo, voltamos ao nosso paralelo com o presente, será o equivalente às delegações de funcionários internacionais (do FMI, da Comissão Europeia) que na Europa deste tempo obrigam os governos de estados endividados a ser “austeros” e impor “leis mais duras”? A psicologia autoritária de Ângelo é o trunfo de que o fraco Duque necessita para restaurar a ordem e a licença em Viena, para fazer a justiça rigorosa e a austeridade, sem as quais o poder pode soçobrar. É o Duque, de resto, que expressamente o admite:

 

Já que foi erro meu dar largas ao povo,

Era grande tirania açoitá-los e moê-los

[…] Foi por isso, meu padre,

Que entreguei a Ângelo este cargo.

E escondido no meu nome ele cumprirá,

Sem que vá a minha autoridade a essa luta

Ouvir calúnias.

 

Este artifício do Duque não deixa de surpreender pela sua extraordinária sinceridade e actualidade. Os políticos que conhecemos nas nossas democracias desejam menos escapar ao estatuto do poder, de cuja aura naturalmente precisam, do que às dificuldades de exercer o poder contra o povo. Sabem que o povo não perdoa aos que perdem o seu respeito. O Duque encontra-se na mesmíssima posição daqueles governantes democráticos que estão mais disponíveis para a indulgência, para a permissividade, para distribuir favores e prebendas, como poderíamos dizer nos nossos dias, do que para a face mais agressiva e drástica do poder. Ângelo afigura-se por isso uma via perfeita para o Duque governar por interposta pessoa, protegendo de qualquer maneira as vestes da sua autoridade – “sem que vá a minha autoridade a essa luta ouvir calúnias”. Esta frase é deveras importante. As ditas “calúnias” a que seria poupada a “autoridade” do Duque são o julgamento do povo, que seria só dirigido contra o delegado:

 

E o novo delegado do nosso Duque –

Seja por falta ou por fogo da novidade,

Ou por ser o corpo do Estado

Um cavalo para o governante montar,

E esse, acabado de sentar, para dizer

Quem manda, dá-lhe logo a espora,

Seja por estar a tirania no seu posto,

Ou apenas a vaidade ter enchido o lugar.

 

 

III

 

Será então legítima esta estratégia com que o Duque visa endossar provisoriamente o poder a fim de se poupar a si mesmo? É curioso que, em O Príncipe, Maquiavel afirma que sim. Segundo conta o florentino, depois de conquistar a Romagna Cesare Borgia deparou-se com um território dividido e desgovernado que era necessário pacificar. Em 1501, Borgia nomeou o delegado Remirro de Orco, conhecido pelo seu carácter enérgico e cruel, à semelhança do Ângelo de Medida por Medida, e a quem concedeu plenos poderes para impor a ordem. Como o delegado fosse bem-sucedido, Borgia arranjou maneira de concentrar em Orco a responsabilidade por todos esses actos violentos e cruéis, libertando a sua autoridade da revolta popular que fatalmente se seguiria. Mas Borgia sabia que o ódio na cidade mais tarde ou mais cedo acabaria por resvalar. O seu governo bem quis fugir às responsabilidades pesadas do governo. Mas assim que teve oportunidade, exibiu a cabeça de Orco na praça pública de Cesena a 26 de Dezembro de 1502, de modo de suavizar e impressionar o povo. Acabou por conseguir.

 

Esta aproximação histórica, a que muitos têm recorrido para explicar o teatro de Medida por Medida, defende que o Duque de Viena manifesta a mesma premeditação do príncipe maquiavélico. E, no entanto, tal como nos mostra a intrincada teia de Medida por Medida, o plano inicial com que o Duque quis fugir do governo e da censura dos homens falha inexoravelmente. A partir do momento em que, disfarçado de frade, o Duque vai percebendo que Ângelo executa cegamente a lei em Viena, a fuga do Duque revela-se frustrada. Na sua identidade de frade, o Duque vai interferindo de múltiplas maneiras na aplicação da lei que condena Cláudio. Ângelo mostra-se um fracasso como delegado; para o Duque, sair do poder não é simplesmente possível. E é o Duque que é obrigado, no final desta peça, ao próprio gesto a que tentou escapar: o exercício do governo. Para o Duque de nada valeu esconder-se atrás do delegado, transferir para Ângelo a solidão áspera da governação, evitar o embate com o povo. Essas são ambições irrealizáveis.

 

Com todas as suas ambiguidades e indecisões, Medida por Medida possibilita, pois, uma leitura anti-maquiavélica. Se o governo existe para ser exercido, não é somente impossível fugir ao seu estatuto, à imagem do poder. É também inviável fugir à responsabilidade que vem com o exercício do governo. Correndo o risco de extremarmos a analogia com o presente, pensemos nas nossas democracias, que, dir-se-á, passaram a ser governadas nesta década por delegações de substitutos. Sabendo que o seu poder é provisório, poderão estes reservar-se o direito de serem ríspidos e punitivos contra uma sociedade acusada, certa ou erradamente, de viver como a Viena desta peça. Os políticos eleitos destas democracias impopulares podem aspirar a esconder-se por detrás dos novos delegados, na expectativa de serem publicamente poupados ao severo julgamento popular.

 

Se o fizerem, mais tarde ou mais cedo irão perceber o seu fútil engano e poderão talvez experimentar a mesma medida, o mesmo destino do Duque de Viena.
 
 
 
Lisboa, 2012


Pedro Lomba 
 
 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário