segunda-feira, 13 de maio de 2013

O Maradona de Tondela.

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Márcio Sousa marcou os golos que deram o último título a Portugal. Mas aos 27 anos nunca chegou a jogar na Liga.
Por:Leonardo Ralha 
 
 
Foi no espaço deixado vago entre um central e um lateral espanhol que Márcio Sousa encontrou a bola, colocada com peso e medida por João Coimbra. Deixou-a bater uma vez no relvado, à entrada da grande área, e chutou com o pé esquerdo, fora do alcance do guarda-redes. Mais de oito mil pessoas gritaram aos 22 minutos de jogo nas bancadas do Estádio do Fontelo, em Viseu, que recebia a final do Europeu de sub-17 de 2003. Sofreriam no início da segunda parte, quando o adversário empatou, mas o pé esquerdo do pequeno médio dos juvenis do FC Porto voltou a ser decisivo cinco minutos depois, num livre a que Adán, agora o terceiro guarda-redes do Real Madrid, não conseguiu chegar.
Quando Márcio foi substituído, aos 77 minutos, entrou para o seu lugar João Moutinho, um médio igualmente pequeno que despontava no Sporting e era a habitual opção do selecionador António Violante para refrescar o meio-campo na segunda parte. "Estávamos todos à espera que o árbitro desse o apito final. Quando aconteceu, foi uma explosão de alegria", recorda à Domingo, sentado num banco de jardim a poucos metros do relvado em que ergueu a taça de campeão europeu a 17 de maio de 2003, sem poder imaginar que essa seria a última vez que Portugal venceria um título de futebol e, sobretudo, sem saber que vivia o ponto mais alto da carreira aos 17 anos.
Uma década mais tarde, o jogador a quem chamavam ‘Maradona' na adolescência, devido ao tamanho, ao peso e à habilidade com a bola, é um dos poucos campeões de 2003 que não chegaram a estrear-se na Liga. "Nos piores momentos relembro o que fiz no Europeu e no FC Porto e penso: ‘Já fui feliz nesses momentos e quero voltar a sê-lo'", explica, convencido de que vai a tempo de demonstrar aquilo que não conseguiu quando integrava a equipa B dos azuis-e-brancos e foi convocado por José Mourinho para dois jogos. "Estás cheio de medinho. Se estás aqui, por alguma coisa é. Portanto, descontrai", disse-lhe o futuro ‘Special One'. Mas tinha à frente Deco, Alenitchev, Maniche e Costinha, e mais tarde chegariam os jovens brasileiros Diego e Anderson.
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CORAÇÃO EM TONDELA
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Terminada a ligação contratual ao FC Porto, que o foi buscar ao Vitória de Guimarães aos 14 anos, tal como o extremo Vieirinha - um dos titulares no título europeu celebrado em Viseu, num onze em que Miguel Veloso e Paulo Machado eram outras figuras -, Márcio não permaneceu em nenhum clube mais do que um ano, até que em 2010 chegou a acordo com o Tondela. Essencial na subida à II Liga na época passada, não perdeu um único jogo em 2012/2013 e tem contribuído para um campeonato tranquilo. A recompensa, ao que a Domingo apurou, é um salário próximo dos dois mil euros mensais, em linha com o que recebia quando estava nas camadas jovens do FC Porto.
"Toda a gente me dizia que ele era problemático, que não gostava de trabalhar, que criava dificuldades ao treinador se não jogasse", diz Vítor Paneira, que assumiu o comando do Tondela há dois anos e logo se dedicou a fazer "trabalho extra" com um jogador que "foi passando ao lado da carreira, muito por culpa própria". O ex-médio-direito do Benfica vê-o agora como alguém "que limpou a imagem de futebolista que não gostava muito de trabalhar e que não era muito de jogar para a equipa".
O jogador, promovido a capitão do Tondela, que se encontra na fase final de uma época cansativa - quatro dias após empatar 1-1 com o Sporting B, recebeu e venceu o Atlético por 2-1, na quarta-feira -, reconhece a importância de tais conversas. "Tenho um presidente que considero um segundo pai e um treinador que merece tudo. Ele disse-me olhos nos olhos: ‘Tu só não vais estar na Liga se não quiseres, pois estás preparado.'"
Não é por isso espantoso que, embora adepto portista, Márcio sublinhe a ligação ao Tondela. "Posso dizer que é o clube de que mais gosto até agora. Deu-me a oportunidade de mostrar o meu futebol e de ter outra vez a esperança de chegar lá acima. É um clube que vou guardar no coração, sem dúvida nenhuma."
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ANOS PERDIDOS
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Na final disputada no Fontelo, cujo relvado Márcio voltou a pisar para ser fotografado para a Domingo, um dos companheiros de equipa era Paulo Machado, que se dedicava a "arrumar a casa enquanto ele construía o ataque", marcando um adversário tão perigoso quanto Jurado, na altura a estrela da Espanha, "ainda mais do que o David Silva". Na passagem a sénior teve algumas oportunidades no FC Porto, mas foi sucessivamente emprestado a outros clubes, um dos quais o Saint-Étienne, o que levou à sua contratação pelo também francês Toulouse, de onde passou nesta temporada para os gregos do Olympiacos.
"Sabia que não chegava a lado nenhum sem trabalhar sempre a mil, que é o que continuo a fazer. Quanto ao Márcio, pensei que chegasse lá acima rapidamente, pela forma como jogava e por tudo aquilo que as pessoas diziam dele", diz o futebolista, que assistiu a alguns jogos do ex-colega, porque o seu irmão integrou o plantel do Tondela.
Certo é que Márcio não teve a transição para sénior que esperava. O primeiro empréstimo foi ao Sporting da Covilhã, onde viu a diferença entre um grande e um clube do Interior, embora tenha sido tratado "da melhor forma possível". O pior foram os adversários: "Na II Divisão B há centrais de alguma idade, que não aguentam o ritmo de jogo e acham que se deve marcar a perna de quem chega e depois logo se vê."
Seguiu-se novo empréstimo, desta vez ao Vizela, equipa da mesma divisão, mas geograficamente mais confortável para um natural de Guimarães. Não correu bem. "Foi uma experiência um bocado má... Havia jogadores com nome e carreira, pelo que não foi fácil integrar-me. Não guardo rancor de ninguém. Culpo-me a mim próprio por a época não ter corrido de feição", recorda o campeão europeu, que admite ter-se "desleixado completamente".
Rio Maior deveria ter sido o clube em que ficaria a treinar enquanto o empresário arranjava um clube, mas não apareceu nenhum interessado e acabou por ficar. "Foi um ano que não quero voltar a repetir. Vi que estava a bater no fundo e tive de levantar a cabeça e começar a batalhar", diz quem teve então como treinador Paulo Torres, o ex-lateral-esquerdo do Sporting que foi campeão mundial de sub-20 em 1991, relegando para segundo plano o brasileiro Roberto Carlos.
Márcio Sousa garante que o próprio treinador se encarregou de lhe "abrir os olhos". "Disse-me: ‘Tens de sair daqui. Não podias ter caído aqui, entendes?'", conta o médio, que teve um ‘encontro imediato' quando António Violante, atual responsável da seleção feminina, se deslocou à cidade ribatejana. "Ouvi alguém a chamar, voltei--me e era ele. ‘Então o que é que estás a fazer? Tens é de jogar na primeira divisão!', disse-lhe. ‘Não há quem acredite em mim...', respondeu-me, ao que eu rematei: ‘Comigo, até no Milan jogavas, mas estás desgraçado, porque eu não estou a treinar nenhuma equipa'", relata o homem que lhe deu a titularidade no Europeu de 2003.
Não foi no clube do ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, mas sim no Nelas que encontrou o balneário seguinte, iniciando uma época que terminou no Penafiel, com muitos jogos a titular e a subida à II Liga. No entanto, um novo treinador não o quis no plantel, pelo que ainda fez um ano no Esmoriz, mais uma vez no terceiro escalão do futebol nacional, antes do Tondela.
Residir em Viseu, a mesma cidade em que foi o mais decisivo de um conjunto que deu quatro nomes à última convocatória da Seleção A não é algo que o perturbe, tanto mais que admite gostar do Fontelo. "Às vezes, até venho aqui dar uma volta para espairecer a cabeça. É um sítio que nunca irei esquecer, passe o tempo que passe. Tenho aqui uma história para contar aos meus filhos e netos, se Deus quiser", desabafa quem ainda não tem descendência, mas garante nada ter a ver com o estereótipo dos futebolistas com vidas consideradas ‘incompatíveis com a profissão'.
"Nunca fui pessoa de sair à noite, mas as pessoas fazem logo essa ideia", garante à Domingo. É, aliás, também essa a convicção do seu treinador. "No fundo, é um bom miúdo. É tranquilo e não se mete em grandes confusões. O telemóvel deve ser a coisa mais importante da vida dele. Está sempre na mão", diz, entre risos, Vítor Paneira.
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GOLEADOS NO MUNDIAL
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Na memória de António Violante há lugar cativo para o papel do pequeno médio no bom ambiente no Europeu. "Dava-se muito bem com o Miguel Veloso. De vez em quando dava com eles no final dos treinos a verem quem era mais preciso no passe longo", recorda quem voltou a apostar em ‘Maradona' no Mundial de sub-17, disputado na Finlândia, no verão de 2003.
Portugal não repetiu o triunfo e foi afastado pela Espanha, com um pesado 5-2 nos quartos de final. Já na fase de grupos, o Brasil aplicara 5-0 aos campeões europeus, que estiveram a vencer os Camarões pela mesma marca, mas consentiram o 5-5. "A nossa equipa afundou mesmo", admite Violante, que nos anos seguintes se apercebeu das dificuldades que Márcio Sousa enfrentaria. "Se do ponto de vista técnico não estivesse acima dos restantes teria dificuldades, pois é pequeno e não é muito rápido. Mas lia muito bem o jogo, tinha uma precisão de passe incrível e rematava muito bem. E tinha uma imaginação incrível", lembra o treinador.
Tais qualidades não foram esquecidas pelos colegas que com ele cantaram o hino há dez anos no relvado do Fontelo. "Tinha e tem muita qualidade. Lembro-me que éramos muito chegados. Bons tempos... Era muito brincalhão e gozão", recorda Manuel Curto, um dos avançados de Portugal, que não teve a chance de chegar à equipa principal do Benfica - apesar de ser um dos goleadores do Mundial de 2003, com os mesmos cinco golos de Cesc Fàbregas, do Barcelona - e que, transformado em médio-defensivo, joga agora no Taraz, um clube do Cazaquistão.
Mais perto encontra-se o outro avançado português no Euro'2003, Carlos Saleiro, que integra o plantel da Académica de Coimbra depois de uma época na Suíça. Recordando Márcio como "um dos ‘palhaços' da equipa", pois contagiava os colegas com a sua boa disposição, o homem também conhecido por ser o primeiro bebé-proveta português não poupa elogios ao colega: "Tinha muita influência no nosso jogo. Era o número 10, com um pé esquerdo fabuloso. Fazia jogar a equipa e tinha muita influência nas bolas paradas." Emprestado quatro vezes pelo Sporting antes de lhe ser dada a hipótese de integrar o plantel principal, Saleiro acredita que o médio "ainda vai a tempo de atingir o seu objetivo de jogar ao mais nível em Portugal".
Vítor Paneira vai mais longe. "Parece-me que ele nunca tinha traçado muitos objetivos na sua vida. Sabia que tinha um pé esquerdo fabuloso e sentia que iria lá chegar sem precisar de muito mais", afirma o treinador, que estabelece uma meta realista para o jogador, considerando "muito difícil" que ainda vá chegar a um clube grande. "Ele andou a ‘pastar' muitos anos, percebe? Mas acredito que vá chegar à Liga. De certeza absoluta e vai fazer a diferença", diz.
Paulo Machado eleva ainda mais a fasquia: "O Márcio tem lugar em praticamente todas as equipas da Liga. Faltou-lhe alguém que o ajudasse nos momentos certos, alguém que lhe mantivesse os pés bem assentes na terra, mas agora é um jogador maduro. Passou por muito e está de certeza mais forte. Basta uma oportunidade e todos vão começar a perguntar: ‘Onde é que andou este rapaz estes anos todos?'"
Para o capitão do Tondela já não é tempo de desculpas. Nem a altura (1,69 metros). "O Moutinho é do meu tamanho e não deixa de ser o jogador que é", observa Márcio, garantindo que não sente mágoa por ver o ex-colega a jogar no FC Porto. "Fico contente por ele, tal como por todos os meus colegas que estão a jogar noutro patamar. A única amargura é comigo mesmo, pois podia estar ali." Embora nada impeça a vida de recomeçar aos 27 anos.






 

1 comentário:

  1. esta peça diz tanto parecendo dizer tão pouco. dos derrotados não reza a história. é uma pena que assim seja, porque a vida não se faz só de vitórias. aliás, acredito que na maioria dos casos se fassa essencialmente de derrotas.

    a história dos derrotados é a história que me interessa. a história dos coitados que não cumpriram o seu suposto destino. e o que é nos sobra depois do fracasso? a amargura, o vazio, as memórias do tempo em que ainda acreditávamos em nós e do tempo em que os outros acreditavam em nós. sobram as ruínas de uma vida que já não existe. resta saber se alguma vez existiu.

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