quarta-feira, 15 de maio de 2013

Camões em Constância?

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Camões, por Júlio Pomar

 

 

CAMÕES EM CONSTÂNCIA?

O SONETO "EL VASO RELUZIENTE Y CRISTALINO"

 

 

                                               El vaso reluziente y cristalino,

                                               De ángeles agua clara y olorosa,

                                               De blanca seda ornado y fresca rosa,

                                               Ligado con cabellos de oro fino,

                                     

                                               Bien claro parecía el don divino

                                               Labrado por la mano artificiosa

                                               De aquella blanca Ninfa graciosa

                                               Más que el rubio luzero matutino.

 

                                               Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,

                                               Raxado de los blancos miembros bellos,

                                               Y en el agua vuestra ánima pura;

 

                                               La seda es la blancura, y los cabellos

                                               Son las prisiones y la ligadura

                                               Con que mi libertad fue asida dellos.

 

Tradução literal:

 

                                               O vaso reluzente e cristalino,

                                               De anjos água clara e olorosa,

                                               De branca seda ornado e fresca rosa,

                                               Ligado com cabelos de ouro fino,

 

                                               Bem claro parecia o dom divino

                                               Lavrado pela mão artificiosa

                                               Daquela branca Ninfa graciosa

                                               Mais que o ruivo luzeiro matutino.

                                               No vaso vosso corpo se afigura,

                                               Rachado pelos brancos membros belos,

                                               E na água a vossa alma pura;

 

                                              A seda é a brancura, e os cabelos

                                               São as cadeias e a ligadura

                                               Com que minha liberdade foi presa neles.

 

 

         O soneto acima foi publicado pela primeira vez na Terceira Parte das Rimas, edição de D. António Álvares da Cunha, 1688 e, com poucas variantes, tem sido incluído em todas as principais edições da lírica de Camões, a partir da do Visconde de Juromenha (1861). Não figura no "cânone mínimo" estabelecido por Leodegário A. de Azevedo Filho (Lírica de Camões, 1. História, metodologia, corpus, Lisboa, INCM, 1985, pp. 215 e 292), por não preencher nenhum dos requisitos de autenticidade exigidos por este camonista. Tal facto não significa, como reitera uma e outra vez o saudoso erudito brasileiro, que a composição necessariamente não pertença a Camões, pois o seu método de aferição é essencialmente dinâmico e o cânone dele resultante tem caráter meramente afirmativo, estando aberto à inclusão de outras obras, à medida que a descoberta de manuscritos quinhentistas hoje desconhecidos ou inacessíveis lhes venha conferir autenticidade. Esta composição, pelo menos, jamais foi atribuída especificamente a outro autor.

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         O próprio Juromenha declarou duvidar muito que fosse de Camões (Vol. II, p. 488). Mas, como vimos, não foi rejeitada por nenhum editor moderno, à exceção de Azevedo Filho.

         O objetivo deste ensaio não é nem afirmar nem negar a sua autenticidade, mas simplesmente buscar interpretá-la sob um novo prisma, segundo o qual, aceitando-se, por hipótese, certos pressupostos de natureza biográfica, poder-se-á admitir a probabilidade da autoria camoniana. Fazemo-lo tendo em mente estas observações de Maria de Lurdes Saraiva (Luís de Camões, Lírica Completa I, Lisboa, INCM, 1980, pp. 13-14):

         Muitos passos da obra de Camões que hoje nos parecem herméticos e incompreensíveis, tornar-se-iam  transparentes se conseguíssemos encontrar a chave adequada. É a este esforço de decifração que  teremos de aplicar-nos e de que não podemos demitir-nos. Os eruditos e estudiosos têm-se limitado quase  exclusivamente a analisar particularidades estilísticas e os aspectos linguísticos da obra do Poeta, desinteressando-se quase por completo da mensagem biográfica nela contida.

         Em algumas edições modernas, tem-se considerado que, no soneto em exame, o Poeta compara a amada a um precioso vaso cristalino, contendo um líquido perfumado, adornado de seda e fios de ouro. Em nosso entender, é esta uma interpretração iludida, sugerida por uma leitura não alerta para a natureza críptica da composição. Aquela comparação encerra uma imagem indigente do ponto de vista poético, dificilmente admissível num gênio com a sensibilidade de Camões, se foi   ele o autor. Além do que não é suficiente para explicar todas as partes do poema, em especial o segundo quarteto, cujo sentido fica no ar. Se assim não fosse, Wilhelm Storck não o teria intitulado Adivinhando, em sua tradução para o alemão, acrescentando que ela deixava ao leitor muito por adivinhar. Nem Juromenha teria afirmado ser necessário possuir a chave da charada para que o enigma fosse resolvido (Cf. Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Sonetos de Camões. 'Corpus' dos Sonetos Camonianos, Braga, Barbosa & Xavier, 1980, p. 567). Estes eruditos sabiam que havia algo mais consistente sob a enganosa aparência do "falar trocado", um dos ingredientes mais prestigiosos do arsenal poético do "discreto", novamente nas palavras de M. de L. Saraiva (op. cit., p. 13). Apenas não chegaram a perceber o que era, talvez por não disporem, em seu tempo, de todos os dados hoje ao nosso alcance. A maioria dos editores nem se animou a aventar suposições.

         Em nossa opinião, o soneto pode estar relacionado com o problemático "desterro ribatejano" do Poeta, em torno de 1550, presumivelmente na antiga Punhete, chamada Constância a partir de 1836, vila situada na confluência dos rios Tejo e Zêzere. Não é nosso intuito tomar partido na polêmica que cerca esta tradição, por muitos, a partir de Adriano Burguete (Luís de Camões em Constância, Lisboa, Vol. I, 1942; Vol. II, 1947), defendida ardorosamente com argumentos indiretos, mas até agora, ao que nos consta, sem suficiente confirmação documental, ainda que com consagração oficial, como a construção da Casa-Memória de Camões sobre as ruínas da que o teria acolhido e a criação, ao seu pé, do Jardim Horto de Camões. Reportamo-nos, a este respeito, a obras de estudiosos que, com mais isenção, têm-se dedicado a essa investigação de maneira desapaixonada, como Maria Clara Pereira da Costa (Da Investigação Histórica sobre a Casa de Camões em Constância, Lisboa, 1977) e José Hermano Saraiva (Vida Ignorada de Camões, 2.ª ed., Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d., pp. 240-254).

         Admitindo, por hipótese, que a tradição seja procedente, e independentemente do facto de a eventual residência do Poeta no Ribatejo ter sido como verdadeiro prisioneiro ou simples degredado acolhido na casa de amigos poderosos, deduzimos que o soneto, pelo ambiente e pelo assunto, possa estar associado a esse perído e tenha o significado que passamos a expor. Esclarecemos que, na identificação de outras obras camonianas, adotamos, quando couber, a numeração tradicional.

         Embora Camões, em algumas obras, tenha empregado o termo "vaso" para designar "recipiente" ou "receptáculo" (p. ex., Lus., IX, 17, 8; Écloga VI, v. 225; Ode V, v. 16; Canção X, v. 245; Sonetos "No mundo poucos anos e cansados", v. 11 e "Já claro vejo bem, já bem conheço", v. 7), no soneto em questão tem ele o sentido de "artéria" ou "veia", conduto pelo qual circula um líquido (significado comum aos idiomas espanhol e português) e, figurativamente, um curso de água, um rio afinal, reluzente ao sol, de água cristalina, clara e cheirosa. E que rio será este? Sem dúvida, como procuraremos demonstrar, o Tejo, o grande inspirador de Camões e morada das suas musas, as Tágides. Por sinal, na Écloga "Agora, já que o Tejo nos rodeia", incluída entre as obras de Camões na edição de Juromenha, excluída pelos editores seguintes, mas resgatada do olvido para o acervo camoniano, como poema de autoria problemática, por M. de L. Saraiva (op. cit., III, pp. 576-585), recuperação também defendida por J. H. Saraiva (op. cit., p. 151), aparece um símile equivalente, com a palavra "veia": "o Tejo nos rodeia, / neste penedo, donde mansamente / murmurando se quebra a branda veia". O mesmo ocorre em duas elegias da área camoniana contestada: "Entre rústicas serras e fragosas", v. 54 ("que encrespam da corrente a branca veia") e "Belisa, único bem desta alma triste", v. 63 ("mas do meu choro nunca enxuga a veia"). Donde se depreende que, mesmo que tais obras não sejam de Camões, a imagem era assaz frequente na poesia de sua época.

         Os epítetos "cristalino" e "claro" são aplicados inúmeras vezes, algumas delas simultaneamente, por Camões ao Tejo: Écloga I, vv. 136, 138, 159 e 366; Écloga II, v. 54; Écloga III, vv. 129 e 141; Ode VI, v. 893; Elegia III, chamada muitas vezes elegia do desterro, v. 63; Elegia VIII, v. 102; Soneto "Moradoras gentis e delicadas", v. 2; Soneto "Cuanto tiempo ha que lloro un día triste", vv. 3-4; e Lus., III, 42, 4 e 55, 8. Esses mesmos qualificativos são empregados em relação ao Tejo por Garcilaso de la Vega, na Écloga III, vv. 65 e 197. Sabemos quanto Camões admirou o poeta castelhano e deixou-se influenciar por suas obras. Várias da éclogas camonianas são calcadas ou parcialmente inspiradas nas de Garcilaso, imitando-o a cada passo, como reconhece até Manuel de Faria e Sousa, tão incondicional admirador do êmulo lusitano (Rimas Varias de Luis de Camoens, Segunda Parte, T. V, Lisboa, Imprenta Craesbeeckiana, 1688, p. 160).

         Cleonice Barardinelli (loc. cit.) comenta que agua de ángeles era um perfume muito em moda na época, e cita Moraes, segundo o qual seria "distil. de várias hervas aromáticas". Mas a definição completa de Moraes (pelo menos na 10ª edição do Grande Diccionário da Língua Portuguesa é: "Água-de-ângeles, s.f. Líquido de perfume muito suave que se usava antigamente e provinha da distilação da água potável [grifo nosso] com o âmbar, o almíscar, a algália e outras drogas odoríferas". Ora, este soneto está escrito em espanhol e, de acordo com o Diccionario de la Real Academia Española, agua de ángeles é "agua perfumada con el aroma de flores de varias clases", o que soa bastante diferente. De qualquer forma, o importante a salientar, nos dois casos, é que se trata de um perfume à base de água, como a água-de-rosas, e não à base de álcool, como a água de Colônia ou a água-de-cheiro. O que o Poeta deseja declarar é que a água do rio é perfumada pelas flores do terreno adjacente. Aliás, referindo-se ao Tejo em outras composições, Camões fala das flores que lhe enfeitam as margens: "brancas rosas" (Écloga I, v. 17), "flores brancas e vermelhas" (id., v. 129), "brancas flores" (Écloga III, v. 5) e "frescas rosas" (Soneto "Levantai, minhas Tágides, a frente", v. 3).

         O sentido da palavra seda apresenta-se-nos um pouco mais complexo. No soneto "Alà em Monte Rey, em Bal de Laça" (ou "Leça"), alegadamente escrito em língua galega, incluído na Terceira Parte das Rimas (cit.) mas atribuído a Diogo Bernardes no Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, o verso 5 fala de seda lassa, isto é, seda frouxa ou fios de seda não torcidos, que a pastora Biolante vai tirando de um copo (feixe, estriga, meada) à beira dum rio. A cena passa-se numa aldeia da Galiza, pouco distante de fronteira trasmontana. J. H. Saraiva (op. cit., p. 140) interpreta essa seda lassa como sendo os cabelos que a jovem está penteando.

         Não sabemos se deste antecedente  ̶  que, a ser de Camões, pensa-se que estaria entre seus primeiros experimentos poéticos ̶ deva-se concluir que, no soneto que estamos procurando decifrar, sendo óbvio que não se trata de cabelos, o Poeta se refira a fios de seda natural ou a casulos de bômbix, possivelmente a secarem ao sol. Seria preciso demonstrar a existência de criação do bicho-da-seda em Punhete no século XVI, de que não conseguimos encontrar notícia certa, embora o seu cultivo já estivesse então estendido por quase todo o território português, mas com maior implantação no Norte (Trás-os-Montes).

         No inventário feito, no início do século XVII, dos bens deixados por D. Madalena de Lafetá a seu filho D. Francisco de Sande, 4.º Senhor de Punhete, e no testamento deste, que instituiu o Morgado de Punhete em 1620, há referências a "um pomar na ribeira da Moreira", a um "pomar na moreira", à "Amoreira" (no inventário) e à "quinta da Amoreira" ou "quinta da Moreira", vinculada às casas da Vila de Punhete como cabeça do Morgado (no testamento) (Cf. Pereira da Costa, op. cit., pp. 188-190, 200 e 202). Não há, nestes documentos, nenhuma menção explícita ao cultivo do bicho-da-seda, mas, como se sabe, a folha da amoreira usa-se para alimentar as criações de sirgo. Entretanto, a árvore era também cultivada pelos seus frutos, pois tratava-se da amoreira negra ou preta (Morus nigra, L.), amoreira dos frutos (Cf. João Ignacio Teixeira de Menezes Pimentel, Sericultura Portuguesa, Lisboa, 1902, pp. 10-11). O topônimo Amoreira ainda persiste nas proximidades de Constância.

         O verso seguinte contém diferentes conotações apropriadas à presente interpretação. Representa-se-nos uma seara de trigo. Às espigas maduras deste cereal aplicam-se habitualmente, em poesia, os epítetos dourado, louro, fulvo, flavo. Na Elegia "Agora, já que o Tejo nos rodeia", atrás citada, o verso 30 é "nos seus molhos atando o louro trigo". O símile aqui usado é frequente em Camões.

         Na Redondilha "Guardai-me esses olhos belos", o verso 5 da segunda glosa diz "cabelos de ouro mais fino". Na Ode XIII, o verso 4 é "soltando seus cabelos d'ouro fino". A referir, também, o incipit do Soneto "Ondados fios d'ouro reluzente" e os versos 2 e 3 do Soneto "Dizei, senhora, da beleza ideia": "para fazerdes esse áureo crino, / onde fostes buscar esse ouro fino?". A alusão ao ouro pode estar relacionada com a fama do conteúdo aurífero das areias do Tejo, explorada tanto por Garcilaso quanto por Camões e outros poetas. Camões o faz na Elegia I, vv. 95-96, "ou por colherdes ouro rutilante / das tágicas areias rico fruto"; na Écloga VIII, v. 50: "Areia de ouro que o rico Tejo espraia"; na Canção XI, v. 28, "Que o levar as areias do fino ouro"; no Soneto "Em um batel que, com doce meneio, v. 2, "O aurífero Tejo devidia"; em Lus., V, 99, 7-8, "Nem as ninfas do Tejo, que deixassem / As telas de ouro fino e que cantassem".






Garcilaso de la Vega

 

         Este ouro servia para elaborar os fios com que as ninfas do rio teciam suas telas, o que vem muito a propósito em confronto com o segundo quarteto do soneto em exame, como veremos. Eis os versos 105-112 da Écloga III de Garcilaso, na tradução do poeta português José Bento (Garcilaso de la Vega, Antologia Poética, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986, p. 175):

 

                                      As telas eram feitas e tecidas,

                                      do ouro que o opulento Tejo envia,

                                      apurado após serem escolhidas

                                      num crivo as areias onde o havia,

                                      e de umas verdes algas, reduzidas

                                      a fibra sutil, qual se requeria,

                                      para seguir o estilo delicado

                                      do ouro, em ricos fios estirado.

 

         Esta obra de Garcilaso é também evocada nas Éclogas II, vv. 221-227 e VII, vv. 64-110, de Camões, e na sua Elegia "Correntes águas frias do Mondego", vv. 22-30.

         O segundo quarteto do nosso soneto tem sabor nitidamente garcilasiano, estando inegavelmente inspirado na referida écloga do grande colega espanhol de Camões, o que confirma a identificação feita, no quarteto anterior, do vaso como sendo o rio Tejo. Nele utiliza-se muitas expressões que aparecem na composição de Garcilaso, como passamos a indicar: cristalino (Tajo, v. 65), cabellos de oro fino (v. 69), arteficio (v. 117), labrado (v. 118), blanca (Ninfa=Nise, v. 194) e claro (Tajo, v. 197). Na écloga de Garcilaso, a ninfa Nise é qualificada de que en hermosura par no tiene, no verso 56, e de blanca, no verso 193. O autor do soneto designa sua ninfa blanca e graciosa más que el rubio luzero matutino, isto é, mais que a estrela-matutina ou estrela d'alva, pelos antigos também chamada Lúcifer, e que vem a ser o planeta Vênus, deusa da beleza, o que vale dizer uma beleza sem igual, como afirmava Garcilaso.

         Lembre-se que o episódio narrado pelo vate espanhol decorre "perto do Tejo" ("cerca del Tajo, en soledad amena", v. 57), verso tão conhecido que era justamente o que, no poema burlesco quinhentista As Cortes do Parnaso, de Diogo de Sousa, diz-se que Garcilaso vinha cantando, vindo Camões logo atrás dele. Por sinal, o próprio Camões, nas Oitavas "Quem pode ser no mundo tão quieto", escreve, nos versos 207-208: "passara celebrando o Tejo ufano / o brando e doce Lasso castelhano". O trecho da écloga que se relaciona com o segundo quarteto do soneto camoniano fala da ninfa Nise (nome que constitui anagrama de Inês e que J. H. Saraiva considera também criptônimo de Joana, uma das amadas de Camões e possível motivo de seu desterro ribatejano ─ op. cit., p. 252), que tece uma fina tela ("don divino", no soneto) com fios de ouro, na qual se retrata o Tejo no ponto em que banha a cidade de Toledo, quase circundando-a (vv. 193-216), situação que muito se assemelha à de Constância, edificada num outeiro junto de onde o rio Zêzere entra no Tejo. Acrescente-se que, na mesma composição, Garcilaso emprega, muito antes de Camões, para uma ninfa do Tejo, o nome Dinâmene, o qual, na sua forma paroxítona, viria a tornar-se tão caro ao poeta português.

         Talvez esse constante contraponto com poemas de Garcilaso seja o motivo de este soneto ter sido escrito em espanhol.

         Esta permanente ambiguidade no significado de cada imagem, que vimos apontando, é perfeitamente normal neste gênero de composição sigilosa, em que a intenção do autor é justamente confundir o leitor e eludir, mediante aparências falsas e dúbias, a identificação precisa, que poderia ser comprometedora, das pessoas, lugares e situações. Não fora Camões "o grande mestre das subtilezas do falar trocado", nas palavras de J. H. Saraiva (op cit., p. 384)! A imagem fundamental é a do rio, que nos parece indiscutível. As demais são accessórias e, para elas, tanto pode valer uma explicação como outra, ou todas a um tempo, contanto que sejam lógicas e verosímeis.

         Analisada a primeira parte do soneto, passemos ao exame dos tercetos, onde se procede à comparação de uma pessoa  ̶  presumivelmente a mulher amada  ̶  a quem o poeta se dirige, com a paisagem antes descrita, fazendo a analogia de cada uma de suas principais partes ou qualidades (corpo, membros, alma , tez e cabelos) com os aspectos destacados naquela.

         Para bem apreender o símile, é preciso imaginar o autor a contemplar a paisagem desde uma eminência: poderia ser o outeiro referido no verso 50 da elegia do desterro ("Constância estende-se pela base e encostas dum alto monte, banhado pelo Tejo e Zêzere"  ̶  A. Burguete, op. cit., Vol. I, p. 45), a torre de menagem do Palácio dos Sandes  ̶  antigo Castelo de Punhete  ̶  ou o balcão do segundo andar da Casa dos Arcos ("o Castelo fica na margem e dentro do Tejo, a poucos metros da foz do Zêzere; e a Casa, a poucos metros do Castelo, debruça-se sobre o Tejo, que a visita pelas cheias grandes"  ̶  A. Burguete, op. cit., Vol. I, p. 10), em Constância, ambos hoje inexistentes; ou até mesmo, se se preferir, a torre do Castelo de Almourol, situado numa das extremidades duma ilhota de configuração alongada no meio do Tejo e longitudinal ao seu eixo, não muito abaixo de Constância. Dos locais da vila, sua vista abarcaria um amplo panorama da confluência do Tejo com o Zêzere (ou somente do Tejo, na hipótese Almourol) e os terrenos convizinhos. Tanto num caso como no outro,  ele veria o curso d'água dividir-se em dois ramos, rachar-se, fender-se (raxado, que, em espanhol moderno, grafar-se-ia rajado, significa em português "rachado", "fendido", "partido"): em Constância, na forquilha formada no encontro das duas correntes; em Almourol, na divisão das águas do Tejo pela intersecção da ilha. Em Constância, parece que o ponto ideal de observação seria a torre do Palácio dos Sandes, que ficava "na margem e dentro do Tejo, a poucos metros da foz do Zêzere" (A. Burguete, ibidem). O curso do Tejo, a jusante, figuraria o corpo da mulher, mais propriamente o seu tronco; os dois ramos resultantes dessa separação constituem os membros inferiores, por melhor dizer, as coxas, às quais tanto se poderia aplicar o qualificativo blancas como blandas, variante esta que aparece nas edições de Juromenha e de Teófilo Braga.

         A água clara do rio representa a alma pura da mulher. Os casulos brancos de seda figuram a cútis, e os molhos amarelos de trigo, amarrados em medas, representam os cabelos louros atados, em que a liberdade do Poeta foi apanhada. Nos versos 1-3 da redondilha de Camões "Guardai-me esses olhos belos", já trazida à colação, aparece uma imagem semelhante a esta última: "De laços de ouro tão belos / pretende Amor fazer molhos / para prender quem ousa vê-los". Ainda aqui há uma reminiscência de Garcilaso, que, na canção IV, versos 101-103, diz:

 

                                      De los cabellos de oro fue tejida

                                      la red que fabricó mi sentimiento,

                                      do mi razón revuelta y enredada, ...

 

por sua vez já imitado de antecedentes italianos, como Ariosto, num soneto de suas Rimas:

 

                                      La rette fu di queste fila d'oro

                                     In che'l mio pensier vago intricò l'ale, ...

 

         A comparação pode ser forçada, especialmente para quem não tenha contemplado a paisagem, mas é altamente poética. Quão longe estamos da prosaica analogia da amada com um jarro de flores rachado ou um frasco de perfume de formato caprichoso, acondicionado em embalagem de luxo, que poderia resultar duma observação desprevenida!

         A menção final à privação da liberdade, enleada nos cabelos da mulher, pode conter uma alusão aos motivos da estada do Poeta no local: desterro, degredo, refúgio, prisão? Grande incógnita!

         Sobre o aspecto da paisagem actual em relação à do século XVI, há que assinalar o grande assoreamento sofrido pelo Tejo e a considerável redução do caudal do Zêzere, em consequência da construção da barragem de Castelo de Bode. Estes factos podem dificultar sensivelmente a compreensão do observador moderno para a imagem que o Poeta concebia quatro séculos atrás. Grande alteração devem ter experimentado também a vegetação circundante e as actividades econômicas da ribeira. Poderia perfeitamente existir então um trigal na margem oposta do Tejo, onde via-se, até alguns anos atrás, quando por ali andamos, uma indústria corticeira. A configuração escarpada das margens do rio em Almourol dificulta a acomodação de algumas das imagens do símile, razão pela qual nossa preferência inclina-se para Constância.

         Alimentamos a esperança de poder contribuir, com este modesto artigo, para ajudar a evocação desse panorama ainda hoje tão belo, mas não tanto quanto o seria quando Camões teria sido possivelmente inspirado a imaginar nele a figura da mulher amada.

 

                                                                                    Rubem Amaral Jr.

 
 
 





6 comentários:

  1. Clap...Clap...Clap...

    Parabéns ! Um primor de erudição e análise que muito enriquece a quem se deteve no tempo para usufruí-lo. Meus aplausos em onamatopéicas que como linguagem de quadrinhos é o meu chão.
    Do modesto sapateiro seu admirador e amigo.
    Athos

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  2. Mais exacto, como você sabe, seria perguntar: "Camões em Punhete?"

    Foi a dinastia de Bragança que acabou com as Punhetes em Portugal.

    É mesmo essa uma das suas maiores glórias, se não a maior. Havia três Punhetes no nosso país. Essa de que fala passou a Vila Nova de Constança, e não Constância, segundo leio no Fialho, Vida Irónica (1892), p. 39. A última, no concelho de Oliveira do Hospital, passou a chamar-se Aldeia Formosa. Para assinalar este feliz acontecimento na história pátria, Fialho escreveu uma crónica que incluiu no dito livro, intitulada: "El-Rei D. Carlos mostra a sua real munificência, extinguindo Punhete". É de ler, que tem graça e é de graça.

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    1. Obrigado pelo comentário. De facto, do ponto de vista histórico-cronológico, tem toda razão, mas, por motivo de eufonia, no título preferi poupar o Malomil e seguir a lição pudica de Adriano Burguete. José Hermano Saraiva ironiza sobre o antigo nome da vila no seu livro que cito. Em todo caso, não deixei de registá-lo no texto.

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  3. Excelente artigo sobre um tema fascinante.

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  4. Gostei.
    Seria interessante explorar também a personagem «Urbano» da «Lusitânia Transformada» de Fernão Álvares do Oriente, que António Cirurgião defende ser Camões. O cenário central da obra publicada em 1608 é... junto a Constância.

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