Cartaz norte-americano de propaganda de guerra, aqui
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O
Committee on Public Information (CPI)
foi criado pelo presidente Woodrow Wilson em Abril de 1917, através da Executive Order 2594. Dele faziam parte o
Secretário de Estado, o Secretário da Defesa e o Secretário da Marinha, o que
demonstra a importância que lhe era dada. A liderança executiva do CPI foi
atribuída, bem à maneira pragmática americana, a um jornalista, George Creel.
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George Creel
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O
seu objectivo era fazer a propaganda da intervenção dos EUA, algo decisivo
porque a Grande Guerra era então vista como um conflito europeu. Note-se que o
próprio Wilson fizera campanha para a sua reeleição em 1916 prometendo que os
Estados Unidos não participariam na guerra. O lema era: “He kept us out of war!”. Quanto a incumprimento de promessas em
democracia, estamos conversados…
É
muito interessante o papel que foi reconhecido à propaganda, em notável
contraste com países como Portugal, onde a decisão de entrar em guerra não foi
preparada junto da opinião pública, nem a intervenção foi alguma vez entendida
pela população, o que contribuiu em boa medida para o descrédito da Primeira
República.
O
CPI usou de todos os meios ao seu alcance para criar entusiasmo junto da
opinião pública, de modo a sustentar a posição do presidente de Wilson. É o que
se pode constatar no relatório final do chairman
George Creel (ver aqui http://archive.org/details/completereportof00unit).
O CPI também procurou influenciar as decisões de outros povos, como se pode
verificar em cada capítulo dedicado ao trabalho realizado em vários países.
Cada país tinha um capítulo. À Rússia são dedicados nove capítulos. Não admira:
depois da revolução democrática de 1917, a grande questão era a de saber se a
Rússia faria a paz com os alemães antes dos americanos terem um exército a
sério na Europa. E, se tal sucedesse, a Alemanha ganharia a guerra.
Em
27 de Outubro de 1917, o chefe da secção russa do CPI, Edgar Sisson, deixa os
Estados Unidos, chegando a Petrogrado em 25 de Novembro. As suas ordens são as
de abrir escritórios da CPI em várias cidades russas. A sua missão? Tudo fazer
para manter a Rússia ao lado dos aliados. O maior risco? Os bolcheviques
tomarem o poder. A melhor maneira de proceder? Provar que os bolcheviques
estavam ao serviço dos interesses da Alemanha imperial.
Edgar
Sisson era um antigo editor da The
Cosmopolitan (de 1914 a 1917) que levou alguns colaboradores da revista
para a CPI. Foi o caso de Carl Byoir. Note-se que Byoir não era jornalista, mas
homem da publicidade e da área comercial. O seu objectivo era aumentar as
vendas das publicações do império Hearst. Fazia um duo imparável com Edward
Bernays, também recrutado para a CPI. Veja-se o destaque que ainda hoje se dá
ao seu contributo seminal no sítio “The
Museum of Public Relations” (http://www.prmuseum.com/byoir/cb13-19.html).
Acresce que Edward Bernays (nascido em Viena, em 1891) era sobrinho de Sigmund
Freud: filho de Anna Freud, irmã do mestre, também era sobrinho da mulher de
Sigmund. Este financiou a emigração do pai de Edward para os Estados Unidos,
assim salvando, pelo menos, uma das suas irmãs, a mãe de Edward Bernays.
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Edward Bernays
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Diz-se
que a influência do pai dos psicanalistas não se perdeu na concepção de Edward
Bernays da comunicação como meio de orientar e condicionar o comportamento das
massas (Bernays nunca deixava de lembrar a sua relação familiar com Freud e
diz-se que se auto-intitulava “psicanalista de empresas em dificuldades”). Em
suma, na CPI reuniu-se um grupo que percebia, como ninguém e mais cedo do que
muitos, o modo como os novos meios de comunicação tornavam todas as palavras e
imagens em armas. A história da CPI foi, justamente, contada num livro com o
título Words that Won the War, onde
se afirma que um dos mais importantes “invasores” da América Latina, em nome da
CPI, foi Edward Bernays. Depois do armistício, Bernays fez parte da delegação
americana à Conferência de Versalhes. O seu papel seria o proporcionar
assistência técnica aos jornalistas americanos que cobriam o evento. Ou seja, a
comitiva de Wilson já incluía um assessor de imprensa. Curiosamente, a
tendência de Bernays mais para a publicidade do que para o jornalismo levou-o a
divulgar informações demasiado bombásticas, como naquela ocasião em que disse
que “the announced object of the
expedition is to interpret the work of the Peace Conference by keeping up a
worldwide propaganda to disseminate American accomplishments and ideals.”
Dois dias depois o New York World titulava um artigo: “TO INTERPRET AMERICAN IDEALS.” Conta-se
que vários senadores republicanos, de tendência isolacionista, ficaram
furiosos, o que contribuiu para a posterior rejeição da entrada dos Estados
Unidos na Sociedade das Nações. Bernays, pelo seu lado, critica o director da
CPI, George Creel, por o não ter deixado desempenhar o seu papel, dando conta
aos americanos do que verdadeiramente se estava a passar em França. Desse modo,
concluiu, não foi possível criar uma opinião pública americana favorável à
Sociedade das Nações. Em qualquer das versões, o propagandista Bernays teria
influenciado o curso da história.
Bernays
e Byoir usaram de seguida técnicas desenvolvidas no CPI para ganhar milhões no
mercado das relações públicas. Esta designação é, em si mesma, um prodígio de spinning. O que Bernays e Byoir fizeram
foi misturar técnicas de publicidade e propaganda, muitos interesses políticos
e/ou comerciais e construíram o que mais tarde recebeu designações como lobbying, spinning e hoje é protagonizado, de modo mais ou menos conspícuo,
pelas auto-designadas (eufemisticamente) agências de comunicação. Senão
veja-se: o primeiro trabalho de Bernays e Byoir foi o de mobilizar a opinião
pública americana para uma coisa que, não tenhamos dúvidas, preocupava
sobremaneira os agricultores do Midwest: a independência da Lituânia. Hoje a
campanha está esquecida, mas Bernays considerava-a “o protótipo mas modernas
técnicas de relações públicas”. E também lhes valeu US $23.000, pagos pelo
Conselho Nacional da Lituânia o que, compreensivelmente, os convenceu de que
havia muito dinheiro a ganhar nesta área.
Esta
digressão dá-nos uma ideia do modo como começou a ganhar forma no CPI uma
convicção e uma técnica: as ideias são como uma arma e as palavras são como
balas (expressão que Bernays gostava de usar). Mas é bom recordar que a
filiação desta ideia é antiga, muito embora as técnicas variem. E sempre foi
muito melhor entendida nos Estados Unidos do que na Europa. O papel de Samuel
Adams e de John Hancock, os propagandistas da Revolução Americana, bem o
demonstra. O momento que melhor o revela
é o da proclamação do comandante inglês, o general Gage, datada 12 de Junho de
1775, nos termos da qual todos os insurrectos seriam perdoados, se tivessem a
delicadeza de se entregar. A todos seria proporcionada essa última
oportunidade. A todos menos a dois, Adams e Hancock, precisamente aqueles que
não usaram a espingarda como arma, mas tão somente a palavra.
A
estadia de Edgar Sisson em Moscovo deve ser vista a esta luz. Em Fevereiro de
1918 foram-lhe mostradas cópias de documentos promissores porque pareciam
demonstrar que o governo de Lenine estava a ser diretamente financiado pela
Alemanha, pelo que Sisson deve ter ficado deliciado por ter à mão tudo aquilo
que queria e em tão pouco tempo. Dispôs-se de imediato a pagar somas avultadas
pelos mesmos (aproveita-se para esclarecer que a alegada ingenuidade americana,
tantas vezes denunciada como causadora de desastres na área das informações,
não foi a única responsável: Sisson foi informado pelo chefe dos agentes
ingleses em Petrogrado, um tal E. T. Boyce, que era sabido que o russo que
apresentara os documentos a Sisson estava em contacto com quem estaria, do lado
russo, a redigir toda a informação sobre as negociações de Brest-Litovsk, assim
dando credibilidade ao vendedor). Nesse mês e no seguinte, Sisson comprou toda
a numerosa documentação que lhe foi apresentada e, muito contente consigo
mesmo, iniciou a complicada viagem de regresso aos Estados Unidos.
No
entanto, em maio, ao chegar a Washington, ficou furioso quando deparou com
alguma resistência à utilização da documentação que reunira. O Departamento de
Estado, em particular, não manifestou qualquer interesse pelo seu conteúdo. É
certo que o tratado de Brest-Litovsk fora assinado em 3 de Março e que a Rússia
já estava fora da guerra. Mas, para o CPI, perfilava-se já um novo objectivo:
ferir o mais possível o governo bolchevique, para beneficiar os seus opositores
na guerra civil o que isso teria a ver com a função do CPI é outra questão).
Sucede que o Departamento de Estado estava preocupado com o seu pessoal ainda
colocado em áreas controladas pelos bolcheviques, enquanto os homens do CPI que
se encontravam na Rússia estavam todos nas áreas controladas pelos exércitos
brancos. Os últimos membros do grupo da Rússia e Sibéria chegariam aos Estados
Unidos, em segurança, em Junho de 1919.
George
Creel não se acanhou. Tendo acesso ao Presidente, dirigiu-se ao próprio Woodrow
Wilson, pelo que foi com a superior autorização presidencial que os documentos
foram publicados em Outubro de 1918 (ler aqui http://archive.org/details/germanbolshevikc00unit).
Depois, como surgissem algumas acusações de que o seu conteúdo não poderia ser
verdadeiro, a documentação reunida foi submetida pelo CPI à avaliação de dois
especialistas americanos, um historiador (Franklin Jameson) e um linguista
(Samuel Harper), que não puseram em causa a sua veracidade: “We have no hesitation in declaring that we
see no reason to doubt the genuineness or authenticity of these fifty-three
documents”.
Por
essa altura, o presidente Wilson hesitava quanto ao modo de reagir contra a
tomada de poder pelos bolcheviques. O grande explorador George Kennan,
considerado o maior conhecedor americano da Rússia, profundo crítico do regime
autocrático czarista, defensor dos liberais russos, amigo de Kropotkin,
denunciou então a timidez da resposta da administração Wilson. Tendo viajado no
século XIX pela Rússia, sobretudo na Sibéria e no Cáucaso, escreveu um livro – Siberia and the Exile System –, onde
denunciava os abusos do sistema penal, ao mesmo tempo que apresentava um quadro
fantástico sobre a vida nessas paragens que ainda hoje, segundo os
especialistas, pode ser lido com grande proveito (ver aqui: http://archive.org/details/siberiaexilesyst01kennuoft).
Essa obra tornou-o famoso no seu país, permitindo-lhe entrar no circuito de
conferencistas. Dedicava seis meses por ano ao speaking tour. Em 1895 calculava que, em dez anos, já teria sido
visto e ouvido por cerca de 400.000 americanos e ingleses. Vangloriava-se de
ter, sozinho, criado uma opinião pública americana sobre a Rússia,
influenciando-a claramente contra o regime czarista.
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George Kennan, 1868
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George Kennan
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Apesar
destes antecedentes, George Kennan tomou, em 1918, uma posição muito frontal
contra os bolcheviques, por considerar que lhes faltava tudo – conhecimentos,
experiência e educação – para lidar com os tremendos problemas criados pela
queda do Czar.
Tinha
razão, claro! Quem possuía respostas ideológicas tentadoramente simples não
poderia senão tentar simplificar a realidade. Pois o que foi o leninismo senão
uma simplificação, empobrecedora do ponto de vista das ideias, mas extremamente
funcional no plano da acção, do pensamento de Karl Marx? E o que foi o
leninismo no poder, com a planificação, e, sobretudo, com o estalinismo, senão
uma enorme e trágica tentativa de simplificação? Uma simplificação que exigia a
uniformização pela força dos povos e dos modos de vida existentes na Grande
Rússia não podia deixar de ter custos humanos espantosos, intuía George Kennan.
Anos
mais tarde, o seu primo afastado, o americano George Frost Kennan, curiosamente
nascido no mesmo dia, mas em 1904, veio dar-lhe razão. Em The Decision to Intervene (Princeton University Press, 1958)
defendeu que o desembarque na Rússia de forças aliadas, em 3 e 4 de Agosto de
1918, foi um ponto de viragem na História, marcando todo o século XX. Aquelas
forças, além do mais insuficientes, ao intervirem permitiram aos bolcheviques
atrair alguns nacionalistas para a luta contra o estrangeiro, dissuadir alguns
daqueles que se lhes poderiam opor e isolar os exércitos brancos, garantindo a
sua vitória final. Para este Kennan, ali, naquela decisão pífia, estaria a
origem da divisão do mundo em dois blocos.
Ora,
antes de publicar essa obra, na edição de Junho de 1956 do The Journal of Modern History George F. Kennan tinha desmontado de
forma radical todo o edifício de ilusões em que se baseavam os documentos
comprados e apresentados por Edgar Sisson. O célebre autor do Long Telegram, reputado russólogo tal
como o seu primo, agora na versão sovietólogo, publica naquela revista
científica um artigo sob o título “The
Sisson documents”, no qual destrói qualquer pretensão: tudo não passava de
documentos forjados, misturados com um ou outro que, sendo verdadeiro, nada
continha de relevante, mas dava laivos de credibilidade ao conjunto. Por outras
palavras, parafraseando alguém, os documentos verdadeiros não continham nada de
relevante, os documentos relevantes não continham nada de verdadeiro.
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George F. Kennan
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Datas
erradas, personalidades que estavam onde não podiam estar, factos que não
podiam coincidir com a realidade, uma série de insinuações e meias-verdades que
pretendiam construir uma estória credível. A CPI, publicando aqueles
documentos, no fundo provou do mesmo veneno que tinha disseminado: engoliu por
boa uma ficção.
Os
próprios especialistas pouco sabiam do que atestavam. Um, o historiador, não
conhecia os factos e não sabia russo, pelo que não podia ler os documentos.
Outro, o linguista, apenas sabia da língua. Ou seja, a CPI quisera que os
documentos fossem verificados mas, como os cria (e queria) verdadeiros,
encontrou quem lhe dissesse o que pretendia que fosse dito.
Kennan
revela que, se o conteúdo dos documentos fosse verdadeiro, teria de se
acreditar em coisas absurdas: numa altura em que a Rússia ainda estava em
guerra com a Alemanha, os principais líderes estariam na lista de pagamentos do
governo germânico, o Estado-maior alemão teria dois escritórios secretos em
Petrogrado e o mesmo Estado-maior teria decidido as eleições de Janeiro de 1918
para o comité central do partido bolchevique (só se intitularia partido
comunista em Março desse ano) e ainda que as negociações de Brest-Litovsk
tinham sido uma farsa, pois todos os negociadores bolcheviques estariam ao
serviço dos alemães (curiosamente, Edgar Sisson, com a maior tranquilidade,
asseverava isso mesmo quanto às negociações: tudo tinha sido a fingir).
Além
disso, havia erros infantis. Por exemplo, cartas de oficiais alemães escritas
em russo perfeito o que, podendo acontecer, não era provável nem tinha lógica:
os líderes bolcheviques dominavam o alemão. Pior era o facto de as assinaturas
dos oficiais alemães conterem caracteres em cirílico…
Kennan
concluiu que, muito embora não se pudesse afastar a hipótese de um financiamento
alemão ao governo bolchevique, e até fosse crível que ele tivesse existido, os
documentos Sisson nada provavam. Não passavam de uma colossal mistificação.
Quem
fora o mistificador? George F. Kennan foi ao ponto de analisar grafologicamente
a letra presente em muitos daqueles documentos, para atestar que a sua autoria
deveria ser atribuída a Ferdynand Antoni Ossendowski. Mas a descoberta deste
nome tem a sua pequena estória. Acontece que Edgar Sisson comprara os
documentos a um tal Evgeni Semenov, jornalista russo da rede de periódicos de
Aleksei Suvorin, conhecido anti-alemão e anti-semita.
Como
se chegou a Ossendowski? Quando Semenov fugiu da Rússia, passou por Londres
onde teve várias reuniões com Sir Basil Thompson, diretor da Scotland Yard. Foi
aí que disse que fora Ossendowski quem lhe entregara os documentos.
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Ferdynand Antoni Ossendowski
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Quem
era Ossendowski? Por estranho que hoje nos parece, no primeiro quartel do
século XX era considerado um dos maiores escritores de literatura de aventuras
do mundo. Era mesmo visto como o escritor polaco mais famoso, depois do autor
de Quo Vadis, Henryk Sienkiewicz
(defensor da independência polaca, quando recebeu o prémio Nobel, em 1905, este
declarou: “A Polónia foi declarada morta; eis uma prova de que ela vive!”).
Ora,
os livros de Ossendowski, alguns deles supostamente autobiográficos, narravam
aventuras extraordinárias. Hoje põe-se em causa quase tudo o que de
pretensamente histórico deles consta. Nascido na Polónia dominada pelo império
russo, em 1876, a sua vida é envolta em lendas alimentadas pelo próprio.
Ter-se-á envolvido com a oposição russa e com nacionalistas polacos, estando
uma temporada atrás das grades. A sua imaginação atribuiu a detenção a uma
suposta relação próxima com o ministro Conde Witte e ao facto de ser
“especialista em questões sobre ouro e platina”.
O
que parece certo é que Ossendowski, hábil manuseador da pena, foi, também ele,
“propagandista”. Esteve ao serviço de grupos de interesses russos que cobiçavam
os capitais alemães e que, por isso, difundiam um discurso nacionalista em
jornais por si controlados. Entre 1914 e 1917, esses grupos julgaram chegada a
oportunidade de se assenhorearem dos negócios alemães que até aí prosperavam na
Rússia. Ossendowski foi um dos seus peões: assinava artigos nos jornais nacionalistas
de Suvorin que defendiam esses interesses. Não eram notícias nem editoriais.
Pareciam artigos de opinião, mas eram pagos à peça. Só nos primeiros seis meses
de 1915, detectaram-se vinte desses artigos, sempre no mesmo sentido, todos de
Ossendowski.
Em
1917, Ossendowski serviu brevemente os serviços de informação militares russos
no período entre as duas revoluções. Mais tarde, acrescentou ao seu currículo a
qualidade de espião. Parece que foi apenas um professor dos verdadeiros espiões
militares, na qualidade de especialista em “propaganda anti-alemã”. Acontece
que os serviços de informações estavam preocupados com a superior qualidade da
propaganda bolchevique e julgou encontrar em Ossendowski alguém que poderia
encontrar meios de a contrariar.
Depois
da revolução de Outubro, tinha disponível muito material que podia fornecer ao
seu amigo Semenov para este vender aos representantes dos aliados, de modo a
“provar” a filiação alemã dos bolcheviques. Pouco depois, no entanto, julga-se
que em maio de 1918, teve de fugir. Optou por seguir pela Sibéria. Depois, como
conta na sua obra mais famosa, afirma ter passado, depois de inúmeras aventuras,
pela Índia. É nesse livro – Beasts, Men
and Gods, assim mesmo em inglês (o livro foi publicado, com imenso sucesso,
em 1922, quando da sua estadia nos EUA e pode ser lido aqui – http://archive.org/details/beastsmengods00osseiala
– e é mesmo um bom livro de aventuras) – que dá conta dessa outra lenda do
período da guerra civil, o “Mad Baron” ou “Bloody Baron” que Hugo Pratt faz
contracenar com Corto Maltese na Sibéria.
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Corto Maltese
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Roman von Ungern-Sternberg
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Lidas
as páginas que Ossendowski dedica ao barão general von Ungern-Sternberg, pouco
se retira da loucura desmedida que lhe é atribuída por outros. O que é curioso,
dado que a principal fonte de informação que é invocada sobre a personagem
fantástica do general budista, um místico sanguinário que tentaria criar um
reino na Ásia Central, sublevando os mongóis e impondo o seu mando com métodos
selváticos, é o próprio livro de Ossendowski.
A sensação com que se fica é que, ou Ossendowski não conheceu von Ungern
ou, se o conheceu, que este é menos brutal do que se conta (é certo que ficou
atestado que, na Grande Guerra, von Ungern cometeu actos de grande selvajaria
que levaram ao seu afastamento da frente a certo ponto, criando assim uma
reputação que o seguiu até ao fim, fim esse que aliás, se deu de modo brutal
pouco depois de Ossendowski pretensamente ter contactado com ele).
Depois
de um período americano, Ossendowski voltou para a Polónia ainda em 1922, sem
nunca se ter referido aos documentos Sisson. Tinha suficiente notoriedade (e
credibilidade) para dar aulas na Escola Superior de Guerra e na Escola de
Ciência Política da Universidade de Varsóvia. Também foi conselheiro do governo
polaco. Era visto como um especialista na União Soviética (mais um, nesta
estória …). Para o reforçar, escreveu então uma biografia de Lenine, que parece
não ter grande interesse (mas que foi publicado nos EUA, em 1931, com um
subtítulo interessante: God of the
Godless, ou seja Deus dos Sem Deus,
um título óptimo para os Estados Unidos –
sempre a habilidade para o uso da palavra como arma).
Durante
a Segunda Guerra ainda terá colaborado com forças polacas que combatiam os
alemães e preparavam um pós-guerra não dominado pela União Soviética. Tendo
adoecido no inverno terrível de 1944, quando o Exército vermelho esperava
tranquilamente que os alemães eliminassem os combatentes da resistência polaca,
saiu de Varsóvia. Veio a falecer, no início de Janeiro de 1945, numa pequena
aldeia.
É
curioso notar que, sendo polaco e nacionalista – pelos vistos, nesse ponto,
Ossendowski era genuíno, tal como Sienkiewicz –, atacou os alemães não apenas
por interesses financeiros, mas também por entender que a Grande Guerra podia
abrir portas à independência da pátria. Nesse cenário, a Alemanha, por ser mais
forte, devia ser o mais possível debilitada. Depois, com a iminente derrota
alemã, era preciso atacar a Rússia sovietizada. No final, os alemães,
porventura por terem esquecido o velho “propagandista anti-alemão”, deixaram-no
viver tranquilamente na Polónia entre 1939 e 1945. Mas os velhos bolcheviques
não o esqueceram.
A
longa mão estalinista chegou apenas um pouco atrasada. Duas semanas depois da
sua morte, em 18 de Janeiro, mal a pequena localidade foi tomada, o NKVD
apareceu à inquirindo do paradeiro de Ossendowski. Conta-se que foram ao ponto
de exumar o corpo para ter a certeza da sua morte. Todos os seus livros foram proibidos
na Polónia comunista. Todos os que foram encontrados foram queimados. Só
voltariam a ser editados em 1989.
Os
documentos Sisson são hoje vistos como um embuste muito mal executado e que,
assim mesmo, enganou quem estava ansioso por ser enganado. Em Maio de 1916, na
revista inglesa The Bookman, o então
ainda editor da Cosmopolitan, Edgar
Sisson, dava o seu contributo, respondendo a uma questão: “– Por que razão os
manuscritos são rejeitados?” A sua tese era simples: os bons textos, mesmo que
sejam rejeitados uma ou duas vezes, acabarão por ser publicados por alguma revista
literária. Só os medíocres, defendia, não serão nunca aceites. O novo escritor
talentoso, no seu entender, “receberá muitas cartas de rejeição, mas elas serão
apenas uma parte do cenário no caminho que está a subir. A única forma de
aprender a escrever é escrever, escrever e escrever mais uma vez. Muito do que
os escritores de génio escreverão no início será mau – como os génios, olhando
para trás, algumas vezes admitirão.”
Em
1956, Ungern e Ossendowski já não eram deste mundo. Não conseguimos determinar
se Edgar Sisson ainda era vivo. Se o fosse, olhando para trás, talvez admitisse
que a estória em que acreditou não era verdadeira. E que, não o sendo, tinha
sido arquitectada por homens extraordinários, mas não por ele mesmo. Mas também
não consta que Sisson fosse um inventor de estórias de génio (ou narrativas,
como hoje soi dizer-se). Esse papel coube, na literatura e na vida, a homens
como Ossendowski e von Ungern. Na política coube a homens como Bernays, Byoir e
alguns aprendizes de feiticeiro que têm acolitado, a bom preço, muitos que
chegam impulsionados ao poder e que, depois, não sabem o que fazer com
ele.
José
Luís Moura Jacinto
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