O
marxista russo Aleksandr Lvovich Parvus é conhecido pelo papel que terá tido
junto do movimento revolucionário na Rússia do início do século XX, quer como
teórico, que ombreava com Trotsky, sendo os seus contributos respeitados pelo
próprio Lenin, quer como possível financiador do partido bolchevique. Depois da
revolução de 1905 foi viver durante alguns anos para a Turquia onde se tornou
negociante de armas, o que, durante as guerras balcânicas, lhe proporcionou um
considerável pé-de-meia. Vendia metralhadoras Vickers, era comparsa do famoso
Basil Zaharov e assim se transformou num milionário marxista, uma pretensa
contradição nos termos. Não espanta que Lenin desconfiasse dele e nunca o tenha
deixado envolver-se demais no financiamento do partido. Rejeitou, por exemplo,
que Parvus se imiscuísse na preparação da viagem de regresso à Rússia em 1917,
muito embora Parvus tivesse construído no seu período turco preciosas ligações
com dignitários alemães que estavam ansiosos por ver Lenin em Petrogrado.
Parvus estava de facto, desde 1915, a conspirar com os alemães para fomentar a
revolução na Rússia – ver a documentação diplomática alemã em http://archive.org/details/Germany-and-Revolution-in-Russia-1915-1918
– mas, tanto quanto parece, estava de boa-fé: entendia que só uma guerra e a
derrota nela da Rússia permitiriam a revolução, pelo que não abandonara os seus
princípios revolucionários nem se encontrava ao serviço da Alemanha.
Tamanha
desconfiança de Lenin em relação a Parvus redundou no reforço da sua ligação a
outro marxista com boas relações com a alta finança, o suíço Karl Moor.
Veterano do movimento socialista helvético, que tanto destaque obteve nesse
período por poder acolher livremente os revolucionários de todo o mundo, Moor
começou em 1876 a sua actividade como jovem activista e depois como jornalista.
Na época era considerado o primeiro marxista puro do movimento operário da
Suíça alemã.
Filho
de um aristocrata do exército austríaco e de uma filha de boas famílias suíça,
cortou cedo com a família, levando uma vida errante e, em muitos aspectos,
obscura. Ainda hoje é referenciado na Wikipédia como um banqueiro suíço que
financiou a revolução – http://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Moor_(Swiss_banker)
– quando, na verdade, apesar da fama que alimentou de ter contactos ao mais
alto nível, nunca foi nada de parecido. Muito pelo contrário, dotado de gostos
caros, a sua vida foi pontuada por constantes problemas de falta de
financiamento. O que terá sido agravado pela sua fama de Casanova (diz-se que
aos 75 anos ainda conseguiu convencer a sua jovem enfermeira a casar). Em suma,
mais um socialista possuído por altos princípios, mas querendo viver à grande com
o dinheiro dos outros.
Antes
de 1914, conheceu Lenin, Radek e muitos outros revolucionários. Em 1913, tomou
posição pelos bolcheviques, o que lhe valeu o reconhecimento de Lenin. Em 1917,
quando a Parvus se fechava a porta, foi fundamental na criação de condições
para o regresso de Lenin pelo território alemão. Parece que foi Moor que serviu de
intermediário entre os bolcheviques residentes na Suíça e o governo imperial
para resolver a questão prática do financiamento da viagem.
Com
a vitória da revolução, fixou-se na URSS. Em 1923 foi visto a viver no Hotel
Savoy de Moscovo, queixando-se da parca pensão que o governo lhe pagava,
indigna de um amigo de Lenin que tanto fizera pela revolução. Dava mesmo a
entender a quem o queria ouvir que teria sido com o seu dinheiro que Lenin
sobrevivera no exílio suíço e que, desse modo, desbaratara toda a sua fortuna.
Um colega refugiado no país dos sovietes, com uma visão saudavelmente cínica,
disse então que Moor só permanecia na Rússia para que lhe devolvessem o seu
dinheiro e também devido ao seu gosto por jovens bonitinhas.
Em
Dezembro de 1926, o comité executivo da Internacional Comunista enviou-lhe a
seguinte missiva: “Muitos parabéns pelo seu 74º aniversário, camarada Karl
Moor, pioneiro do proletariado suíço e internacional, fiel e dedicado amigo da
Revolução Soviética. Ass.: Stalin e Bukharin.”
Em
1927 deixou a União Soviética. O seu faro político fê-lo perceber que a
ascensão de Stalin, que teve como um dos efeitos imediatos a queda do seu amigo
Radek, não augurava nada de bom para si.
Veio
a morrer, aos 80 anos, num sanatório de Berlim, tendo sido descrito na imprensa
comunista como o último dos velhos pioneiros do movimento, pois ainda vinha do
tempo da Primeira Internacional. Sentia-se que falecera alguém envolto num odor
de santidade revolucionária. Mas não se seguiu a canonização. Depois de 1945,
abertos os arquivos alemães e austríacos, descobriu-se, para espanto geral, que
Karl Moor estivera longo tempo ao serviço da Alemanha. O seu nome de código era
Agente Baier. Não satisfeito, também se pusera à disposição dos serviços
secretos austríacos e suíços. Por seu intermédio, o movimento socialista
revolucionário não tivera segredos para esses governos.
Desconhece-se
quando começou a sua carreira de agente secreto, mas é certo que o era em Março
de 1917 quando, depois da revolução russa democrática, os novos governantes
reafirmaram o compromisso com o esforço bélico. Fazer com que os
revolucionários antiguerra tomassem o poder era imperativo e Moor podia dar uma
enorme ajuda, entendiam os seus superiores alemães.
Karl
Moor, pelo seu lado, tudo fazia para dar a ideia de que podia mais do que ecfetivamente
podia. Inventava relatórios, criava factos, exagerava a sua influência.
Garantia aos seus pagadores que os bolcheviques “querem a paz à tout prix”, o que, vindo-se a
confirmar em Brest-Litovsk, na altura era tudo menos certo. Enfim, fazia aquilo
que os agentes secretos desde sempre têm a tentação de fazer (quem não se
lembra das armas de destruição maciça de Saddam?). Nuns casos por razões
ideológicas. No caso de Moor tratava-se, pura e simplesmente, de extorquir
dinheiro para pagar as contas. Nunca se confie num agente secreto dominado
pelas suas pulsões.
Karl
Moor era muito esperto: funcionando como elo de ligação entre duas partes que
não podiam conversar directamente, cada lado só sabia aquilo que ele lhe
transmitia. Por outras palavras, pedia dinheiro a uns para dar aos outros, mas
os alemães só sabiam o que davam e não o que era dado a Moor e os russos só
sabiam o que recebiam e não o que era recebido por Moor. Pelo meio terá sido
filtrada uma grossa maquia.
Uma
situação destas é insustentável, a não ser que não haja alternativa. E Moor
esforçava-se por ser insubstituível: “Vindas de mim – explicava ele aos alemães
– as ofertas silenciariam todas as dúvidas e objecções.” Por outras palavras,
ele era o único em que ambas as partes confiavam, não só por, para uns, ser um
genuíno revolucionário e, para outros, um agente fiel, mas pelo facto de, sendo
conhecido – falsamente –, por ser muito rico, não teria tentações de desviar os
fluxos financeiros.
Permitia-se
acrescentar que as ofertas “tinham de ser entregues em notas e,
preferencialmente, em francos suíços. E, naturalmente, sem ser passado recibo.”
Naturalmente! Ficamos assim a saber que, em estado de necessidade, também a
Alemanha não se preocupa com dinheiros que passam por debaixo da mesa…
O
momento mais absurdo aconteceu quando outro socialista suíço, Robert Grimm, um
genuíno pacifista cuja ajuda Lenin também rejeitou, foi a Petrogrado em 1917
com o intuito de promover negociações de paz com a Alemanha. Quando se
descobriu o motivo da deslocação, os aliados reagiram com ultraje e o governo
de Kerensky deportou-o, acusando-o de ser um espião germânico. No regresso à
Suíça, passou pela Suécia, onde o esperava um tribunal revolucionário. Entre os
juízes, além de Radek (que, por ser austríaco, não pudera entrar na Rússia com
Lenin), estava um espião alemão cujo objectivo era promover a paz entre os
Impérios Centrais e o Império Russo. Isso mesmo, um dos juízes era Karl Moor:
um espião alemão a julgar alguém acusado de ser espião alemão por pretender
fazer, às claras, aquilo que o juiz espião queria fazer às escondidas! Nada mau
para enredo de John Le Carré.
Longe
de se sentir comprometido por estar a julgar um idealista, Moor estava furioso
com Grimm: por um lado, a iniciativa deste, uma vez descoberta, forçou o
governo russo a tomar uma posição mais radical, tornando mais difícil, para já,
que Moor tivesse êxito; por outro lado, se Grimm lograsse ter sucesso, Moor não
receberia o seu quinhão. Em qualquer caso, Moor ficaria a perder. Mas
rapidamente serenou. Logo em Agosto escreveu para Berlim: “O tempo dos
bolcheviques vai chegar mais depressa do que parece no momento. O que este
partido energético mais precisa é dinheiro, muito dinheiro.”
Depois
da revolução de Outubro, os alemães reconheceram o seu contributo e quiseram-no
de imediato na Rússia: “Tendo em conta os acontecimentos na Rússia, a viagem de
Baier para o norte é desejável”, escrevia então um alto responsável do
Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão. Pretendia-se que Moor, com a sua
influência, poderia convencer Lenin e Trotsky de que, ao contrário do que
previram, não havia revolução operária no horizonte da Alemanha. Ora, os
bolcheviques sabiam que, sem revolução alemã, teriam de aceitar uma paz imposta.
De dentro da Alemanha chegavam notícias dos spartaquistas: a revolução segue
dentro de momentos, fazer a paz apenas reforçaria o governo imperial e adiaria
a revolução. Mas Moor, visto como especialista no movimento operário alemão,
deitava água na fervura: nada faz crer que haja uma revolução alemã, os alemães
são demasiado disciplinados, aceitam a palavra do seus governantes e do Kaiser,
suportarão o esforço de guerra enquanto tal lhes for exigido, portanto, o
melhor é fazer a paz já. Lenin acreditou no seu amigo Moor e obrigou Trotsky a
aceitar termos humilhantes. Karl Popper contou nas suas memórias que, quando jovem,
o tratado de Brest-Litovsk o tornou comunista por uns dias devido ao pretenso
pacifismo bolchevique, em contraste com o impulso de morte das potências
capitalistas. Na verdade, é provável que Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht tivessem
razão: a paz de 1918 apenas a leste tornou até possível a vitória alemã e,
seguramente, adiou a revolução que os marinheiros de Kiel só iniciariam no
final de Outubro. O mundo seria diferente se Lenin não tivesse dado ouvidos a
um espião alemão.
É
curioso notar que Karl Radek, um dos que esperava ansiosamente por notícias da
revolução – relembremos que, ainda em 1918, quando a vitória da revolução alemã
era tudo menos certa, entrou de imediato na Alemanha, onde foi logo de seguida
preso –, também acreditou em Karl Moor. Em 1926, pouco antes de cair em
desgraça, ainda exaltava o seu amigo espião: “Imediatamente após a vitória da
revolução, Moor apressou-se a ir para a Rússia.”
Moor
chegou a ser consultor da delegação russa que negociou o tratado de
Brest-Litovsk, em Agosto de 1918. No dia 1 desse mesmo mês enviou um memorando
secreto ao Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, aconselhando que se
aproveitasse as conversações para estabelecer as bases de um futuro
entendimento especial entre os dois países. No início de 1919, Moor continuou
nessa senda. Dirigiu-se a Berlim para libertar Radek. Não o conseguiu, mas foi
ele que em Agosto de 1919 convenceu as autoridades alemãs a transferir Radek
para uma cela especial, onde poderia receber visitantes. Essa cela ficou
conhecia como o “salão político de Radek” em Berlim, tal era o rodopio de
visitantes importantes. Mas é bom notar que, embora estivéssemos na capital da
República de Weimar, dominada pelo SPD, não se tratava de uma conspiração
extremista (afinal, esse mesmo SPD tinha permitido e até promovido a eliminação
dos líderes spartaquistas, cujo partido era o embrião do KPD, o partido
comunista alemão). Pelo contrário: Karl Moor controlava o acesso à cela de
Radek. Foi o primeiro a visitá-lo, levando um militar que era o colega de
Ludendorf. Depois levou o braço direito do novo líder do exército alemão, o
general Von Seeckt, que procurava bases militares na estepe russa que
permitissem a sobrevivência das forças armadas alemãs longe do diktat de Versalhes.
Moor
não conduziu à cela de Radek nem um spartaquista. Note-se que, depois da queda
de Rosa Luxemburg, crítica de Lenin e da revolução bolchevique, os futuros
comunistas alemães já tinham um milhão de militantes e afirmavam-se
pró-soviéticos. Mas Moor tinha outros interesses e, pelos vistos, Radek também.
Moor trouxe-lhe académicos conservadores e militares reaccionários. E muitos
políticos descontentes com Versalhes e desejosos de uma aproximação, fundada
nos interesses e não na ideologia, com a Rússia dos sovietes.
Karl
Moor bem sabia por que razão, em 1927, deixou a sua residência na Casa dos
Veteranos da Revolução, que entretanto se sucedera ao Hotel Savoy. Talvez
Stalin não descobrisse provas de que Moor fora um espião. Mas Stalin não se
preocuparia com provas e, para ele, todos os que tinham tido ligações perigosas
eram, por definição, espiões. A cautela céptica de Moor permitiu-lhe morrer em
paz na Alemanha. E assim se assistiu a uma última ironia na vida turbulenta
mas, afinal, aventurada de Karl Moor: o KPD, o partido que sucedera aos
spartaquistas, cujos líderes tinham sido sacrificados no altar da revolução, ao
menos em parte, por responsabilidade de Moor, fez do seu funeral uma grande e
fervorosa cerimónia partidária. A sua cremação, em Wilmersdorf, foi acompanhada
de discursos entusiásticos. Os jornais do KPD e do SPD publicaram obituários
muito generosos. Em Berna, os socialistas suíços expressaram o seu respeito
pela memória do pioneiro revolucionário. Morrera o amigo de Lenin com preciosos
contactos no sistema financeiro internacional ao mais alto nível. O espião que
sempre estivera ao serviço de três estados e da sua conta bancária só seria
revelado depois da guerra seguinte. E de imediato esquecido, porque não convém
relembrar certas coisas. Assim se faz a história com muitas estórias de
bastidores.
José
Luís de Moura Jacinto
Cá está o chato de serviço de volta por causa do "i" de "financiei" no título ...
ResponderEliminarMas não sendo de todo um "erro" é bem capaz de ser "simpático" .
Abraço
Tem toda a razão, desculpe. E, acima de tudo, muito obrigado!
EliminarUm abraço
António Araújo
Não tem nada que pedir desculpa .
ResponderEliminarPareceu-me um "erro de simpatia" e com esses até simpatizo , são mais fruto do entusiasmo que do descuido .
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCite as fontes por gentileza!
ResponderEliminarCite as fontes por gentileza!
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