Circulava
pela baixa da cidade de Maputo quando vi um cartaz publicitário de rua enorme
da South African Airways que, em destaque, entrelaçava as bandeiras de
Moçambique, de um lado, Angola e Brasil, do outro e, em tamanho pequeno
correspondente à imagem cauda de um avião, a bandeira da África do Sul. A
legenda era: Voe com a companhia que melhor conecta a África Austral com o
mundo. Destaco as palavras África e mundo. Estamos perante um
sinal revelador da vitalidade da cooperação sul-sul, expresso num slogan
que espelha ideais dos que, com justiça, ambicionam semear o progresso.
Contudo, não é de somenos considerar que o cartaz publicitário também vale por
aquilo que silencia, pelo ausente que salta à vista. Ainda que possam estar
subjacentes outros factores, como a concorrência da South African Airways
com a TAP, a imagem é reveladora da intenção, mesmo que inconfessada, de
obliterar Portugal do mundo que fala oficialmente português (Moçambique, Angola
e Brasil). Nesse sentido, há muito de complexo de Édipo neste tipo de
persistência dos que fazem gala em se demarcar (talvez odiar) do progenitor
morto e enterrado, o pai colonial. Nada de novo. É assim que os filhos
cresceram. E é exactamente a palavra filhos que quero usar por se tratar
de um sintoma de infantilidade. Se o assunto se limitasse ao cartaz, esta
reflexão pouco sentido faria. A questão é que ele não é mais do que um sinal
minúsculo, mas não acidental e profundamente sintomático, de um fenómeno mais
vasto que existe nas antigas colónias, fenómeno que rotulo por
anti-portuguesismo. Isso mesmo: anti-portuguesismo. O assunto mereceria
argumentação mais sustentada, porém inadequada neste contexto (aguardo
publicação de um artigo sobre o tema resultante de uma pesquisa que realizei
entre 2010 e 2011). O que, por agora, importa ter em atenção é que seria útil
que os que pensam a condição humana dessem sinais de estar cientes deste tipo
de estratégias de exclusão do outro, neste caso dos portugueses, posto que, na
substância, é disso que se trata. Esses fenómenos são hoje difíceis de captar e
de analisar por permanecermos em excesso intelecto-dependentes das realidades
do século XX e, através delas, de termos e conceitos como xenofobia, racismo
ou nacionalismo, palavras que vão deixando de se revelar eficazes para
percebermos o século XXI (desenvolvi o tema num livro recente). Torna-se cada
vez mais difícil entender a representação etérea do mundo manifestada por
académicos, escritores, jornalistas, entre outros pensadores e activistas do mainstream
Ocidental por fingirem não perceber o que está em jogo no presente. Ou não
percebem mesmo, uma vez que, muito em particular na sociedade portuguesa, não
se tem conseguido pensar com maturidade a questão colonial. É dela que deriva
muito do que hoje condiciona as representações de um conjunto de fenómenos
centrais. Para complementar o exemplo das bandeiras entrelaçadas, recorro a uma
atitude ostensiva por parte dos dirigentes de um estado africano, no caso de
Moçambique, simbolizada na viagem de sete dias que o presidente Armando Guebuza
realiza à China, visita que se insere numa lógica consistente de cooperação
económica. E as vantagens da lei da oferta e da procura apenas explicam parte de
uma opção essencialmente política e ideológica. Tudo isto é, sem quaisquer
dúvidas, legítimo num mundo livre e concorrencial em que cada um faz cínica e,
por isso, civilizadamente o seu papel. Só que o cinismo vira idiotice quando
gera mais perdas que ganhos, como é o caso de Portugal e da Europa para quem
pouco vai sobrando neste jogo. A verdade é que o dito Ocidente não tem razões
para se lamuriar. Deve tão-só renovar o essencial da orientação discursiva e
ideológica na relação com o mundo, até porque o mau da fita que se toma a si
mesmo por bonzinho (o Ocidente) progressivamente arrisca-se a perder dignidade,
a cair no ridículo, a deixar os seus cidadãos e interesses desprotegidos. De
resto, neste jogo, um certo pensamento progressista ocidental, extremamente
crítico em relação ao que o Ocidente fez e faz ao mundo, é o mesmo que depois
ingenuamente protesta (quanto maior o ruído, maiores os sintomas de
ingenuidade) contra a falta de oportunidades de negócios, de emprego ou de
crescimento económico na Europa. Portanto, se o ideal progressista contribuiu
para libertar o mundo da opressão de uns sobre outros, fê-lo de modo
profundamente cristão: crucificando a Europa e os Estados Unidos da América,
julgando que o mundo libertado responderia com equivalente atitude etérea. Não
parece que isso esteja a acontecer ou que venha a acontecer por obra e graça do
destino. Relembro Max Weber: os resultados da acção política podem ser (e são
demasiadas vezes) paradoxais em relação às intenções originárias. Basta pensar
ainda que na vida material, isto é, na vida económica imperam o pragmatismo, o
princípio da realidade, a realpolitik. Em suma, Moçambique, Angola e
Brasil, abraçados pelas respectivas bandeiras nacionais e transportados pela
África do Sul, estão bem no cartaz e recomendam-se. Os que perderam a viagem
ainda não perceberam o que andam a fazer à sua história.
Gabriel Mithá Ribeiro
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