sexta-feira, 17 de maio de 2013

Moçambique: notas de campo (2).















Circulava pela baixa da cidade de Maputo quando vi um cartaz publicitário de rua enorme da South African Airways que, em destaque, entrelaçava as bandeiras de Moçambique, de um lado, Angola e Brasil, do outro e, em tamanho pequeno correspondente à imagem cauda de um avião, a bandeira da África do Sul. A legenda era: Voe com a companhia que melhor conecta a África Austral com o mundo. Destaco as palavras África e mundo. Estamos perante um sinal revelador da vitalidade da cooperação sul-sul, expresso num slogan que espelha ideais dos que, com justiça, ambicionam semear o progresso. Contudo, não é de somenos considerar que o cartaz publicitário também vale por aquilo que silencia, pelo ausente que salta à vista. Ainda que possam estar subjacentes outros factores, como a concorrência da South African Airways com a TAP, a imagem é reveladora da intenção, mesmo que inconfessada, de obliterar Portugal do mundo que fala oficialmente português (Moçambique, Angola e Brasil). Nesse sentido, há muito de complexo de Édipo neste tipo de persistência dos que fazem gala em se demarcar (talvez odiar) do progenitor morto e enterrado, o pai colonial. Nada de novo. É assim que os filhos cresceram. E é exactamente a palavra filhos que quero usar por se tratar de um sintoma de infantilidade. Se o assunto se limitasse ao cartaz, esta reflexão pouco sentido faria. A questão é que ele não é mais do que um sinal minúsculo, mas não acidental e profundamente sintomático, de um fenómeno mais vasto que existe nas antigas colónias, fenómeno que rotulo por anti-portuguesismo. Isso mesmo: anti-portuguesismo. O assunto mereceria argumentação mais sustentada, porém inadequada neste contexto (aguardo publicação de um artigo sobre o tema resultante de uma pesquisa que realizei entre 2010 e 2011). O que, por agora, importa ter em atenção é que seria útil que os que pensam a condição humana dessem sinais de estar cientes deste tipo de estratégias de exclusão do outro, neste caso dos portugueses, posto que, na substância, é disso que se trata. Esses fenómenos são hoje difíceis de captar e de analisar por permanecermos em excesso intelecto-dependentes das realidades do século XX e, através delas, de termos e conceitos como xenofobia, racismo ou nacionalismo, palavras que vão deixando de se revelar eficazes para percebermos o século XXI (desenvolvi o tema num livro recente). Torna-se cada vez mais difícil entender a representação etérea do mundo manifestada por académicos, escritores, jornalistas, entre outros pensadores e activistas do mainstream Ocidental por fingirem não perceber o que está em jogo no presente. Ou não percebem mesmo, uma vez que, muito em particular na sociedade portuguesa, não se tem conseguido pensar com maturidade a questão colonial. É dela que deriva muito do que hoje condiciona as representações de um conjunto de fenómenos centrais. Para complementar o exemplo das bandeiras entrelaçadas, recorro a uma atitude ostensiva por parte dos dirigentes de um estado africano, no caso de Moçambique, simbolizada na viagem de sete dias que o presidente Armando Guebuza realiza à China, visita que se insere numa lógica consistente de cooperação económica. E as vantagens da lei da oferta e da procura apenas explicam parte de uma opção essencialmente política e ideológica. Tudo isto é, sem quaisquer dúvidas, legítimo num mundo livre e concorrencial em que cada um faz cínica e, por isso, civilizadamente o seu papel. Só que o cinismo vira idiotice quando gera mais perdas que ganhos, como é o caso de Portugal e da Europa para quem pouco vai sobrando neste jogo. A verdade é que o dito Ocidente não tem razões para se lamuriar. Deve tão-só renovar o essencial da orientação discursiva e ideológica na relação com o mundo, até porque o mau da fita que se toma a si mesmo por bonzinho (o Ocidente) progressivamente arrisca-se a perder dignidade, a cair no ridículo, a deixar os seus cidadãos e interesses desprotegidos. De resto, neste jogo, um certo pensamento progressista ocidental, extremamente crítico em relação ao que o Ocidente fez e faz ao mundo, é o mesmo que depois ingenuamente protesta (quanto maior o ruído, maiores os sintomas de ingenuidade) contra a falta de oportunidades de negócios, de emprego ou de crescimento económico na Europa. Portanto, se o ideal progressista contribuiu para libertar o mundo da opressão de uns sobre outros, fê-lo de modo profundamente cristão: crucificando a Europa e os Estados Unidos da América, julgando que o mundo libertado responderia com equivalente atitude etérea. Não parece que isso esteja a acontecer ou que venha a acontecer por obra e graça do destino. Relembro Max Weber: os resultados da acção política podem ser (e são demasiadas vezes) paradoxais em relação às intenções originárias. Basta pensar ainda que na vida material, isto é, na vida económica imperam o pragmatismo, o princípio da realidade, a realpolitik. Em suma, Moçambique, Angola e Brasil, abraçados pelas respectivas bandeiras nacionais e transportados pela África do Sul, estão bem no cartaz e recomendam-se. Os que perderam a viagem ainda não perceberam o que andam a fazer à sua história.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 

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