terça-feira, 14 de maio de 2013

Moçambique: notas de campo (1).

 
 



 
 
 
 
 
Saí de Lisboa por volta das 10h30m e são cerca de 16h quando escrevo as primeiras palavras sobre mais uma pesquisa que implica trabalho de campo em Moçambique. Mas não é o tema desse trabalho que capta a minha primeira vontade de registar impressões sobre o que me espera, como é hábito, antes a emigração portuguesa para Moçambique (mas poderia ser para outro qualquer destino da África que fala, ainda que em parte, português). Há qualquer coisa que me comove na actual vaga migratória que reforça a minha admiração pelos portugueses, pela sua história, pelo seu estar no mundo, eu que acumulo ascendestes africanos, árabes e indianos. A África de hoje e do futuro não é nem será mais deles, portugueses e europeus. É do mundo, mas em primeira e última instância felizmente dos africanos. Porém, é doloroso colocar a hipótese verosímil de África se ter transformado numa África contra eles, mais do que alguma vez o fora no passado, mesmo e sobretudo no período da guerra colonial/lutas de libertação nacional. Claro que se trata de uma hipótese discutível, mas que tem muito por onde se sustentar. Na verdade, se é manifesto aquilo que de negativo a colonização europeia legou em África, o conhecimento sobre esse legado tem sido elaborado à custa de recalcamentos, às vezes grosseiros, daquilo que de positivo sempre esteve imbricado no legado negativo. Vejo, por isso, esta vaga migratória como se se tratasse alguém que retorna ao local do crime, mas de alguém que não escapou à justiça, cumpriu a pena, e voluntariamente arrisca uma segunda punição, a do estigma do condenado, a da justiça de senso comum. Alguém que é fácil ser apontado a dedo. Mesmo que, por hábito, não pense a história e os fenómenos sociais de forma valorativa, não deixa de ser útil recorrer, por vezes, a caricaturas para exprimir pensamentos. E não é necessário nem útil que os emigrantes, que no final desta viagem se transformarão em imigrantes, terem noções de que vão em busca intencional do passado histórico do povo a que pertencem com intuito de libertar recalcamentos, numa situação em que esse passado, apesar da muita história que se escreveu sobre a colonização, permanece ainda essencialmente conservado no não-dito, nos inconscientes colectivos. Para verificar isso basta falar recorrentemente com os africanos comuns, como tenho feito em mais de uma década. A questão é que para o emigrante, bem pelo contrário, é o presente, é o imediato que orienta o seu sentido existencial. Para ele, suponho que importa acima de tudo ganhar o presente, com dignidade. Mas será talvez desse modo que o que foi construtivo no passado colonial, a parte trancada no armário, reemergirá por arrasto, ainda que demore décadas, ainda que demore gerações. É por isso que sobre cada imigrante português em África pesa a responsabilidade do mundo, do seu mundo colectivo, da portugalidade, ainda que possam não ter consciência disso. Essa é a maior marca de Portugal. Só que não cabe na brevidade de um anúncio publicitário. E se coubesse, não vendia. Há muito neste campo por debater, e debater abertamente na sociedade portuguesa. Esta deixou-se marcar fortemente por uma construção histórica certamente verdadeira, mas demasiado parcelar,  demasiado selectiva quando confrontada com a ambivalência das relações históricas e dos fenómenos que envolvem pessoas, povos, como foi a colonização. Tal debate será fundamental para facultar às pessoas comuns, portuguesas e africanas, percepções mais equilibradas sobre a génese do actual tempo histórico, tempo que exige à emigração portuguesa em África muita dignidade que, na prática e face às difíceis circunstâncias da emigração, quer dizer suportar as agruras da vida sem grandes recriminações contra o destino, como quem carrega (talvez injustamente, mas carrega) o complexo de culpa por causa dos seus antepassados (mesmo que a culpa não seja o essencial desse passado, mas ela é sempre o núcleo fundador das pertenças colectivas). Perante isto nós, os outros, devemos ficar calados? Calar um sofrimento que percepcionamos ter uma dimensão de inaceitável? Qualquer debate sobre a emigração portuguesa que não inclua África e história colonial será, em Portugal, um sinal de persistência no estado de negação, expressão da moda, mas adequada. Portanto, muito mais do que emigrantes portugueses, é a história colonial que viaja connosco no vôo TP281 Lisboa-Maputo. Suponho ainda que África pouco ganhará com o actual statu quo filho do modo como se contou a história. Isso porque os recalcamentos do passado podem gerar na vaga migratória angústias e receios esterilizantes (justificada ou injustificadamente), aqueles que alimentem a identidade do imigrante-beduíno, aquele que nunca se sente suficientemente seguro para ficar, para ser, para existir na plenitude no espaço onde está a que tecnicamente se chama «sociedade de acolhimento», por alguma razão. Ele ou as gerações que o sucederem. Foi isso que Portugal (e o maldito ocidente para alguns) me proporcionou quando, no início da década de oitenta, desembarquei miserável no aeroporto da Portela, eu, imigrante de sentido contrário. Conservava então a minha filiação à moçambicanidade saída da revolução de meados dos anos setenta, antes da via sacra da emigração com o tempo me oferecer os meus dois amores identitários de hoje – Moçambique e Portugal. Faço, na actualidade, por viver com eles em relativa harmonia (ou distribuir por ambos as desarmonias). E para tal dispersão identitária não há saída. É como é. De resto, o que vejo e, sobretudo, o que sinto neste avião – e também senti na embaixada de Moçambique em Lisboa, sobrelotada de pessoas como nunca antes vira (e venho à minha terra natal com alguma regularidade desde 1997) – é qualquer coisa que me relembra quando, em miúdo, via chegar um ou outro novo vizinho vindo da antiga metrópole ao bairro onde morava, nos arredores da então Lourenço Marques e, depois, novos e antigos conhecidos da terra natal ao bairro onde passei a viver, nos arredores de Lisboa. É nisto que o mundo se tornou. Para o bem e para o mal.
 
Gabriel Mithá Ribeiro



8 comentários:

  1. Que belo texto! No conteúdo e na forma. Parabéns Gabriel Mithá Ribeiro. E parabéns Malomil.

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    1. Obrigado. Da minha parte é um tributo ao serviço público que o Malomil tem prestado.
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  2. Cara Gabriela, tremenda reflexão, a sua!! Plena de oportunidade e sentido fenomenológico!! É, verdadeiramente, pertinente a hipótese "Porém, é doloroso colocar a hipótese verosímil de África se ter transformado numa África contra eles, mais do que alguma vez o fora no passado,.."

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    1. Caro Justiniano
      Apesar da gralha no género, obrigado.
      Gabriel Mithá Ribeiro

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    2. Mil desculpas, caro Gabriel! Nem sei o que me levou a ler Gabriela no Gabriel!!
      Um bem haja,

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  3. Meu Caro Gabriel: Foi com emoção que li este seu texto. Eu que nasci em Luanda, filho de pais metropolitanos e tendo vivido 18 saudosos anos na antiga Lourenço Marques, casado com uma metropolitana, aí me nasceram seis filhos, costumo dizer que sou português por ascentralidade, angolano de nascimento e moçambicano do coração. Bem haja,Gabriel pela sua análise desapaixonada. Um abraço.

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    1. Obrigado Rui Baptista. Um abraço de Maputo, mas que tem a «sua» Lourenço Marques «lá dentro», pelos menos enquanto sobreviverem laurentinos.
      Gabriel Mithá Ribeiro

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  4. O texto é excelente! Parabéns!

    No entanto, não percebo a "segregação racial" implicita nesta frase: "A África de hoje e do futuro não é nem será mais deles, portugueses e europeus. É do mundo, mas em primeira e última instância felizmente dos africanos.".

    Então os brancos nascidos em África não são africanos?

    J. L

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