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Há
dias um moçambicano nascido em mil novecentos e sessenta, de cinquenta e três
anos, que sempre viveu no seu país, disse-me: Sou daqui, mas não sou de
Maputo, sou laurentino. Às vezes quando vou aí às repartições e perguntam-me
onde nasci, vejo a cara do funcionário, se for simpática digo ‘Lourenço
Marques’. Eles às vezes riem-se, mas escrevem sempre ‘Maputo’. Li também
algures uma frase que dizia mais ou menos: Ver implica seleccionar parte da
realidade e, desse modo, ver significa também não ver outras partes de uma
mesma realidade. Recordo a transformação, em 1976, de Lourenço Marques, a
capital da colónia e do estado honorífico, em Maputo, a capital do novo país
independente. Seria uma inqualificável afronta sequer hesitar no reconhecimento,
aos moçambicanos, do direito inalienável de rebaptizarem a toponímia do seu
país independente de acordo com as raízes identitárias ou ideológicas às quais
se filiam, mesmo que as escolhas no domínio ideológico possam ser discutíveis e
muito se tem dito e escrito sobre a toponímia da capital moçambicana por
incluir ruas e avenidas com os nomes, entre outros, de Kim Il-sung ou Ho Chi
Minh. Não é esse o caso do nome da capital, Maputo, escolha muitíssimo mais
consensual e que se transformou num símbolo da capacidade de um povo resgatar a
sua dignidade. Para que fique claro, o que pretendo equacionar situa-se para
além desse aspecto. Remete para os destroços da história que podem comprovar
como a mais justa das justiças pode implicar injustiças de impossível
reparação. Entre os que ainda vivem, e outros que entretanto perderam a vida,
têm e tinham também direito a existir e expressar-se aqueles cujo sentido
existencial ancorava na filiação territorial à antiga Lourenço Marques. De um
dia para outro, o destino suprimiu esse chão identitário. Para além do caso
relatado acima, ainda hoje pessoas como eu, quando indagadas sobre o local de
nascimento ou quando por sua iniciativa querem referi-lo, hesitam em dizer Lourenço
Marques ou Maputo. E não é apenas a censura dos outros que impõe Maputo,
mas sobretudo a censura das próprias consciências, a que nos impõe o dever de
respeito pelos outros, mesmo contra o respeito por nós mesmos, como se os que
persistiram ou persistem em sentir-se laurentinos tivessem sido coagidos a
gravar no fundo das suas consciências uma frase de tipo orwelliano: Lourenço
Marques nunca existiu! Recordo uma situação, passada nos anos noventa, em
que um distinto académico em Lisboa, a propósito de uma conversa coloquial em
que referi Lourenço Marques, posto que era essa a época a que me
reportava, me ter pronta e asperamente corrigido: Lourenço Marques não,
Maputo!, como quem insinua Este é dos que não aceitou a independência. Quando
se fala de violências identitárias cometidas contra as tradições africanas pela
dominação colonial, existe uma dimensão substantivamente equivalente nas
respostas encontradas pelas independências. Maputo é apenas um exemplo. O facto
é que a história, primeiro, e a lógica imparável do tempo, depois,
transformaram os laurentinos numa espécie em vias de extinção. Há sempre
dignidades que ficam do lado errado da história. Espero que delas – da
dignidade dos fracos, dos coagidos a recalcar identidades e sentimentos, dos
condenados a serem suprimidos – também reze a história.
Gabriel Mithá Ribeiro
O caso de Maputo até tem justificação, porque vinculado ao processo de independência, volta às origens étnicas e culturais e afirmação da nacionalidade, como ocorreu com muitas outras cidades em ex-colônias. Outro motivo é a drástica mudança de regime político, como a queda dos países comunistas. No Brasil, há inúmeros casos em que, ao contrário do que ocorreu com a capital de Moçambique, os antigos topônimos foram substituídos por nomes de personalidades políticas que só agradavam ao lado então dominante do quadro político, de que são exemplos a antiga Desterro, capital de Santa Catarina, hoje Florianópolis, em homenagem ao ditador Floriano Peixoto, e Paraíba, capital do estado do mesmo nome, hoje João Pessoa, um governador que foi assassinado. Imagino que muitos nativos dessas cidades, de orientações diferentes, também ter-se-ão recusado a empregar os novos topônimos.
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