quinta-feira, 23 de maio de 2013

Moçambique: notas de campo (4).


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Há dias um moçambicano nascido em mil novecentos e sessenta, de cinquenta e três anos, que sempre viveu no seu país, disse-me: Sou daqui, mas não sou de Maputo, sou laurentino. Às vezes quando vou aí às repartições e perguntam-me onde nasci, vejo a cara do funcionário, se for simpática digo ‘Lourenço Marques’. Eles às vezes riem-se, mas escrevem sempre ‘Maputo’. Li também algures uma frase que dizia mais ou menos: Ver implica seleccionar parte da realidade e, desse modo, ver significa também não ver outras partes de uma mesma realidade. Recordo a transformação, em 1976, de Lourenço Marques, a capital da colónia e do estado honorífico, em Maputo, a capital do novo país independente. Seria uma inqualificável afronta sequer hesitar no reconhecimento, aos moçambicanos, do direito inalienável de rebaptizarem a toponímia do seu país independente de acordo com as raízes identitárias ou ideológicas às quais se filiam, mesmo que as escolhas no domínio ideológico possam ser discutíveis e muito se tem dito e escrito sobre a toponímia da capital moçambicana por incluir ruas e avenidas com os nomes, entre outros, de Kim Il-sung ou Ho Chi Minh. Não é esse o caso do nome da capital, Maputo, escolha muitíssimo mais consensual e que se transformou num símbolo da capacidade de um povo resgatar a sua dignidade. Para que fique claro, o que pretendo equacionar situa-se para além desse aspecto. Remete para os destroços da história que podem comprovar como a mais justa das justiças pode implicar injustiças de impossível reparação. Entre os que ainda vivem, e outros que entretanto perderam a vida, têm e tinham também direito a existir e expressar-se aqueles cujo sentido existencial ancorava na filiação territorial à antiga Lourenço Marques. De um dia para outro, o destino suprimiu esse chão identitário. Para além do caso relatado acima, ainda hoje pessoas como eu, quando indagadas sobre o local de nascimento ou quando por sua iniciativa querem referi-lo, hesitam em dizer Lourenço Marques ou Maputo. E não é apenas a censura dos outros que impõe Maputo, mas sobretudo a censura das próprias consciências, a que nos impõe o dever de respeito pelos outros, mesmo contra o respeito por nós mesmos, como se os que persistiram ou persistem em sentir-se laurentinos tivessem sido coagidos a gravar no fundo das suas consciências uma frase de tipo orwelliano: Lourenço Marques nunca existiu! Recordo uma situação, passada nos anos noventa, em que um distinto académico em Lisboa, a propósito de uma conversa coloquial em que referi Lourenço Marques, posto que era essa a época a que me reportava, me ter pronta e asperamente corrigido: Lourenço Marques não, Maputo!, como quem insinua Este é dos que não aceitou a independência. Quando se fala de violências identitárias cometidas contra as tradições africanas pela dominação colonial, existe uma dimensão substantivamente equivalente nas respostas encontradas pelas independências. Maputo é apenas um exemplo. O facto é que a história, primeiro, e a lógica imparável do tempo, depois, transformaram os laurentinos numa espécie em vias de extinção. Há sempre dignidades que ficam do lado errado da história. Espero que delas – da dignidade dos fracos, dos coagidos a recalcar identidades e sentimentos, dos condenados a serem suprimidos – também reze a história.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro


 

1 comentário:

  1. O caso de Maputo até tem justificação, porque vinculado ao processo de independência, volta às origens étnicas e culturais e afirmação da nacionalidade, como ocorreu com muitas outras cidades em ex-colônias. Outro motivo é a drástica mudança de regime político, como a queda dos países comunistas. No Brasil, há inúmeros casos em que, ao contrário do que ocorreu com a capital de Moçambique, os antigos topônimos foram substituídos por nomes de personalidades políticas que só agradavam ao lado então dominante do quadro político, de que são exemplos a antiga Desterro, capital de Santa Catarina, hoje Florianópolis, em homenagem ao ditador Floriano Peixoto, e Paraíba, capital do estado do mesmo nome, hoje João Pessoa, um governador que foi assassinado. Imagino que muitos nativos dessas cidades, de orientações diferentes, também ter-se-ão recusado a empregar os novos topônimos.

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