23.
A obra de Katsushika Hokusai e, de um
modo geral, as xilogravuras do «mundo flutuante» são admiradas, em larga medida,
pelo distanciamento que denotam face à realidade.
Aliás, a fuga à realidade, a busca
hedonista do prazer efémero e do puro gozo do momento presente são
características desde sempre associadas ao paisagismo do ukiyo-re, seguindo o espírito presente num célebre trecho escrito
em 1661-1665 por Asay Ryōi, no prefácio da sua obra Contos do Mundo Flutuante (Ukiyo
monogatari):
«Viver unicamente o momento presente,
entregando-se de corpo e alma à contemplação da lua, da neve e das flores de
cerejeira e das folhas do ácer, cantar canções, beber vinho, divertindo-nos
simplesmente flutuando, sem nos deixarmos abater pela pobreza, nem permitindo
que transpareça no rosto, mas flutuar à deriva como uma cabaça na corrente de
um rio: isto é o que chamamos ukiyo-re»
(cf.
Richard Lane, Images from the Floating
World. The Japanese Print. Including an Illustrated Dictionary of Ukyio-re,
Alpine Fine Arts Collection, 1978, p. II, apud Ana Anjos Mântua, «Ukyio-re, imagens
de um mundo flutuante», in Imagens e um Mundo
Flutuante. Estampas, livros e álbuns da colecção Paul Ugo Thiran, Lisboa,
Casa-Museu Anastácio Gonçalves–Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2014, p. 14).
A
figuração da Natureza nos mestres do ukiyo-re
surpreende, com frequência, pelo seu elevado grau de abstraccionismo, sendo
porventura essa a razão pela qual as gravuras do «mundo flutuante» suscitaram a
admiração dos artistas europeus como Van Gogh, Whistler ou Monet, que, a partir
de meados e finais século XIX, procuraram romper com os cânones estéticos e figurativos
convencionais. Não por acaso, Van Gogh (que possuía, juntamente com o seu irmão,
mais de quarenta xilogravuras de Hiroshige, algumas das quais chegou a copiar
como esboços para os seus trabalhos) exprimiu a sua enorme admiração pelas obras
vindas do Japão, escrevendo numa carta de 1888: «invejo nos japoneses a sua incrível
clareza. Em momento algum são entediantes e nunca se tem a impressão de que
trabalharam à pressa. É tão simples como respirar: com um par de traços firmes
desenham uma figura com uma ligeireza tal que isso parece tão simples como
apertar os botões de um colete».
A
estilização de certas formas da Natureza é patente em diversas imagens de
Hiroshige ou de Hokusai, podendo apontar-se, quanto ao primeiro, e a título de
mero exemplo, o modo como a chuva é representada em A Ravina de Yamabushi na Província de Mimasaka, xilogravura de 1835 inserida
na série Vistas Famosas de Mais de 60
Províncias. Ou poderá também referir-se as rochas em Okute, a estação 48 da série 53 Estações da Rota Tōkaidō,
de 1833-1834 (existente na colecção da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, tendo aí sido exibida em 2009; cf. também este interessante site).
Utagawa Hiroshige, A Ravina de Yambushi na Província de Mimasaka, 1835
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Em
Hokusai, de igual modo, existem inúmeros exemplos de figurações quase
abstractas, como sucede, designadamente, na forma como o autor de A Grande Onda representa as águas lacustres
ou fluviais. Alguns exemplos do acervo do British Museum:
A par deles, poderia mencionar-se a figuração da chuva (e das águas) na Gravura V (Dai godanme) da série Nova Edição das Perspectivas de Chûshingura (Shinpan uki-e Chûshingura), de 1803-1805.
Museu Britânico, 1908, 616, 0.165
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Na mesma linha, a figuração arbórea da cascata em Queda de Água no
Monte Kurokami em Shimotsuke, da série Viagem
pelas Cascatas das Diversas Províncias, produzida circa 1832.
Katsushika Hokusai, Queda de Água no Monte Kurokami em Shimotsuke, c. 1832
Metropolitan Museum of Art, JP2924
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É habitual considerar-se a figuração da onda de Kanagawa como
exemplo do abstraccionismo de Hokusai, considerando-se que o autor de A Grande Onda concebeu uma vaga ameaçadora,
fantasmagórica, com garras semelhantes aos dos monstros. A onda seria um
gigantesco monstro marinho, o que em parte é verdade; e assim tem sido apresentada em milhares de recriações contemporâneas, muitas das quais de cariz popular.
Simplesmente, análises recentes da opus magnum de Katsushika Hokusai vieram mostrar que existe um impressionante realismo no modo como a onda é representada na célebre xilogravura inserida na série 36 Vistas do Monte Fuji.
Entre essas análises, destaca-se o artigo de Julian H.E. Cartwright
e Hisami Nakamura, «What kind of wave is Hokusai’s Great wave off Kanagawa?», Notes and Records of the Royal Society
(Londres), vol. 63, nº 2, Junho de 2009, pp. 119-135.
Texto do maior interesse para a compreensão de A Grande Onda, dele se refere apenas,
por ora, a conclusão de que certo tipo de ondas, que os autores designam por plunging breakers, apresentam com
frequência uma rebentação em que a espuma se assemelha a mãos, ou dedos de mãos
humanas, tal como Hokusai o fez (cf. a imagem (b), publicada no mencionado estudo de Cartwright e Nakamura).
Daqui não se pode sustentar, como é evidente, que A Grande Onda constitui uma
representação inteiramente fiel da Natureza ou pretende ser um retrato do mar dominado
por uma total preocupação de fidedignidade e de realismo. Como também
demonstram Julian H.E. Cartwright e Hisami Nakamura no artigo atrás citado,
existe, por exemplo, uma distorção do ponto de vista que é feita precisamente
para aumentar, de forma «artificial», a dramaticidade da cena.
Ainda assim, a plena adesão à realidade da figuração do mar apresentada em A Grande Onda é perturbadora para todos
quantos insistem em ver neste trabalho de Hokusai alusões veladas a seres
monstruosos ou criaturas imaginárias.
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