27.
Em
1924, no seu Relance da Alma Japonesa, Wenceslau de Moraes (1854-1929) observava com
pessimismo a situação da arte japonesa da sua época, proclamando o «profundíssimo
desgosto de ter de declarar que, há apenas cinquenta e tantos anos, um terrível
cataclismo caiu sobre a arte japonesa, esmagando-a. Dos terramotos, que tão
frequentemente sacodem o solo do Japão, desfazendo em ruínas a casaria, logra o
Japão vingar-se, fazendo surgir das ruínas uma nova casaria. Do cataclismo, que
destruiu a sua arte, não sabe o Japão vingar-se; antes de dia para dia se
acumulam os destroços, parecendo dever perder-se a esperança de salvá-la. O
furacão da civilização ocidental, que invadiu o império, foi o infausto
causador desta desgraça, inevitável.»
Além
da queda do feudalismo, responsável pelo desaparecimento do mecenato exercido
pelos daiymô, Wenceslau de Moraes
culpabilizava o mercantilismo de origem ocidental e dos seus negociantes que
pediam «não objectos preciosos, como aqueles que até então se fabricavam no
Japão, mas pacotilha barata e vil, que era a única que tinha venda nos mercados
estrangeiros; e os artistas dos charões, das porcelanas, dos bronzes, dos
marfins, tiveram de aceitar o convite, para não morrerem de fome. O
mercantilismo enraizou no solo sagrado do Nippon; a grande indústria surgiu e
floresceu; os próprios japoneses perceberam que, a final de contas, era muito
melhor fabricar camisas de malha de algodão, botões de madrepérola, fósforos de
coisas várias, em vez de objectos de pura arte, ignorada fora,
insuficientemente paga. Estamos no período mundial do utilitarismo; o Japão
tinha forçosamente de acompanhar a evolução. O que virá depois? Não se sabe.
Por agora, é fechar os olhos e andar para a frente.»
Wenceslau de Moraes, segundo ser crê, pretende
referir-se a uma vaga de «japonismo» posterior à que se desenvolveu na Europa,
sobretudo em França, a partir de finais do século XIX.
As
fontes disponíveis indicam que não há referências à presença ou circulação de A Grande Onda, seja na Europa, seja nos
Estados Unidos, anterior a 1883, quando Louis Gonse (1846-1921),
director da Gazette des Beaux-Arts, declarou,
nas páginas do tomo II de L’Art Japonais,
ser proprietário de uma colecção completa de 36 Vistas do Monte Fuji, «admirable série de grandes planches en
couleur dont le seul exemplaire complet, signalé en Europe, se trouve dans ma
collection», dizia Gonse (ob. cit.,
p. 358).
No
início do capítulo dedicado às estampas japonesas, Gonse remete o leitor para
um artigo saído na revista que dirigia, a citada Gazette des Beaux-Arts (vol. XXVI, 2ª série, pp. 133ss), com o
título «Les livres japonnais illustrés» e da autoria de Théodore Duret
(1838-1927), que em 1900 publicará Livres & Albums Ilustrés du Japon. Réunis et catalogués para Théodre Duret
(Paris, Ernest Leroux, Éditeur), onde relata a sua viagem ao Japão, em
1871-1872, na companhia de Enrico (Henri) Cernuschi
(1821-1896), banqueiro, economista, político e coleccionador de arte de origem
italiana, cujo espólio de cerca de 12.500 objectos, maioritariamente de arte do
Extremo-Oriente, constitui actualmente o Musée Cernuschi, em Paris. Naquele
livro, onde a obra de Hokusai é mencionada detidamente (pp. 171ss, remetendo-se
para o livro de Goncourt a p. 175, e
falando-se de Cem Vistas sobre o Monte
Fuj a pp. 203ss), Duret refere, logo
na abertura, que um dos primeiros viajantes franceses no Japão naquela época, o
diplomata Charles Gustave Martin de Chassiron
(1818-1871), num livro de 1861 «eùt donné quelques reproductions de gravures
japonaises prises à l’œuvre d’Hokusaï». Trata-se de Notes sur le Japon, la Chine et l’Inde, 1858-1859-1860
(Paris, E Dentu, Libraire-Éditeur / Ch. Reinwald, Lib.-Éditeur, 1861). Nesse
livro (onde, ao contrário do que diz Duret, não se encontrou qualquer
reprodução de trabalhos de Hokusai), Charles de Chassiron afirma, a dado passo,
algo que poderia parecer decepcionante para a primeira vaga de cultores do japonisme, afirmando que «les objets qui
en ont été importés en Europe ne sont que des objets d’usage ordinaire, et, au
point de vue de l’art, d’un ordre secondaire» (ob. cit., p. 117).
Em
L’Art Japonais, Louis Gonse
mencionará diversas vezes Théodore Duret ao falar, com grande destaque, da obra
de Hokusai, onde refere as incursões manga
e os volumes de Cem Vistas sobre o Monte
Fuji (p. 354) sem, todavia, falar explicitamente de A Grande
Onda. Sabe-se apenas da existência dessa obra na Europa – e, mais
especificamente, na colecção particular de Louis Gonse – dada a fugaz alusão
que o próprio Gonse lhe faz quando, na página 358 do tomo II de L’Art Japonais, de 1883, diz ser
possuidor da única série completa existente na Europa de 36 Vistas do Monte Fuji.
Nesse
mesmo ano de 1883, realiza-se nas Galeries Georges Petit, em Paris, uma grande
exposição de arte japonesa, sendo esta ocasião em que, segundo parece, A Grande Onda foi exibida pela primeira
vez fora do Japão. Da consulta do Catalogue de l’Éxposition Rétrospective de l’Art Japonais aux Galeries Georges Petit
(Paris, Imprimerie de A. Quentin, Abril de 1883), organizado por Louis
Gonse, pode inferir-se que esta importante mostra, pela sua qualidade, dimensão
e diversidade, reuniu obras pertencentes aos grandes coleccionadores parisienses
do japonisme, expondo peças das
colecções da actriz Sarah Bernhardt
(1844-1923), do marchand Siegfried Bing (1838-1905), dos condes Abraham Salomon Camondo (1781-1873),
Isaac de Camondo (1851-1911) e
Nissim de Camondo (1892-1917), do
já citado Théodore Duret, do galerista Georges Petit (1856-1920), o
proprietário da galeria onde se realizou a exposição, do político, jornalista e
historiador de arte Antonin Proust
(1832-1905), do coleccionador e crítico de arte Charles Ephrussi
(1849-1905) ou de Louis Gosse, o organizador do catálogo. Alguns
coleccionadores japoneses também expuseram peças suas, além do poeta de origem
cubana José-Maria de Heredia (1842-1905).
No
conhecido livro A Lebre de Olhos de Âmbar.Uma herança escondida (trad.
portuguesa, Sextante Editora, 2012), o escritor e ceramista
inglês Edmond de Waal descreve a atmosfera em que o seu antepassado Charles
Ephrussi, atrás citado, reuniu uma importante colecção de arte japonesa, na
qual se destacavam 264 netsuke. Com
epicentro em Paris, a voga do japonisme
teve diversos pontos de apoio, como as grandes exposições universais, a revista
Gazette des Beaux-Arts – Courrier Européen de l’Art et de la Curiosité,
fundada em 1859 por Édouard Houssaye e de
que Louis Gonse era redactor-chefe, a par da actividade de comerciantes de arte
como Siegfried Bing. Além de Bing, o mais conhecido marchand parisiense de arte japonesa, Edmond de Waal refere Philippe Sichel (1839-40–1899), também comerciante
de arte especializado em objectos do Extremo-Oriente e autor do livro Notes d’un bibeloteur au Japon,
publicado pelo editor E. Dentu em 1883 (e não 1885, como refere a Wikipedia
francesa) com prefácio de Edmond de Goncourt, obra em que narra uma digressão
pelo Japão em busca de objectos de arte, mencionando de passagem, e sem grande
relevância, o nome de Hokusai. Em 1874 – diz Edmond de Waal –, numa só viagem
de compras, Sichel expediu de Yokohama quarenta e cinco engradados de cinco mil
peças. Não admira, pois, que Goncourt recordasse no seu Jounal uma tarde passada na casa Sichel, pouco depois da chegada de
um carregamento, com o antiquário cercado por «toda aquela arte capitosa e
alucinante» (tout cet art capiteux et
hallucinatoire). Edmond de Waal transcreve um artigo da Gazette des Beaux-Arts, saído em 1878 e particularmente expressivo:
«Mantínhamos a par dos novos carregamentos. Marfins velhos, esmaltes, faianças
e porcelanas, bronzes, lacas, esculturas de madeira, […] cetins bordados,
brinquedos, mal chegavam à loja do importador eram imediatamente arrebatados
para os estúdios de artistas ou de escritores […] Ficavam nas mãos dos pintores
[…] Carolus-Durand, Manet, James Tissot, Fantin-Latour, Degas, Monet, dos escritores
Edmond e Jules de Goncourt, Philippe Burty [ao que parece, o criador do termo japonisme], Zola, […] dos viajantes
Cernuschi, Duret, Emile Guimet […].» [a
colecção de arte do industrial Émile Guimet
(1836-1918), faz hoje parte do Musée national des arts asiatiques – Guimet,
em Paris, contendo cerca de 3000 gravuras do «mundo flutuante»].
A
rede de sociabilidades da alta burguesia parisiense, muita dela com origem
judaica (como as famílias Camondo e Ephrussi), desvenda múltiplos contactos que
explicam, em larga medida, o enraizamento e a difusão da moda do «japonismo»
nos meios artísticos franceses, e não só, de finais do século XIX, as quais
foram responsáveis pela primeira projecção da obra de Katsushika Hokusai e, em particular,
de A Grande Onda. A vivência dessas
elites foi captada por Edmond de Goncourt
(1822-1896) no Journal des Goncourt. Mémoires de la vie littéraire, que escreveu com o
seu irmão Jules, devendo lembrar-se que Edmond de Goncourt foi autor de um extenso
e conhecido ensaio sobre Hokusai (Hokusai: l'art japonais du XVIIIe siècle, Paris, C. Charpentier et E. Fasquelle, Éditeurs, 1896), ainda hoje publicado em versão adaptada (aqui, por ex.). Charles Ephrussi
era um colaborador regular da Gazette des
Beaux-Arts, sendo nas páginas desta revista que, como se disse, Théodore
Duret publicou um artigo sobre livros japoneses ilustrados. Antonin Proust, de
seu lado, era amigo de infância do pintor Édouard Manet e foi comissário da
Exposição Universal de Paris de 1889, tendo ainda desempenhado funções como secretário
de Estado das Belas-Artes, cargo criado por Léon Gambetta com equivalência ao
grau de ministro, razão pela qual é considerado o primeiro «Ministro da Cultura»
da República francesa. Antonin Proust era próximo de Gustave Louis Dreyfus
(1837-1914), que trabalhou como engenheiro nos trabalhos do Canal do Suez e se
notabilizou como coleccionador de arte, tendo redigido, em co-autoria com
Charles Ephrussi, o Catalogue descriptif des dessins des maîtres anciens exposés à l’École des beaux-arts
(Paris, G. Chamerot, 1879). Gustav Dreyfus, ostracizado na sequência do affaire Dreyfus e da onda de antissemitismo
que o caso gerou, foi membro do júri de várias exposições internacionais ou
universais (Paris, 1867 e 1878; Viena, 1873). Como é sabido, outro cultor do japonisme, Émile Zola, tem uma intervenção
decisiva no caso Dreyfus.
Antonin
Proust era também próximo de Georges Petit, o proprietário da galeria em que se
expõe pela primeira vez A Grande Onda
de Hokusai, tendo ambos adquirido em 1889 o famoso quadro L’Angélus, de Jean-François Millet. Antonin Proust – que, segundo
parece, não tinha ligações familiares ao escritor Marcel Proust – foi ainda
responsável pela aquisição, por parte do Estado francês, de um famoso quadro de
James Whistler (1834-1903), pintor norte-americano em cuja
obra existem diversos indícios da influência dos mestres japoneses da
xilogravura.
Em A
Lebre de Olhos de Âmbar, Edmond de Waal menciona também a proximidade entre
as riquíssimas famílias judaicas Ephrussi (conhecidos como les Rois du Blé, pois na época eram os maiores exportadores de
cereais de todo o mundo), com casa na Rue de Monceau, e Camondo, financeiros
oriundos de Constantinopla e que moravam igualmente na Rue de Monceau, num
palácio que é hoje um museu de artes decorativas, o Musée Nissim de Camondo.
Reflectindo o peso destas duas famílias na propagação da moda do coleccionismo febril
de arte nipónica, o escritor e jornalista inglês George Augustus Sala (1828-1895) escreveu em 1878, no seu livro Paris Herself Again, que «o japonismo
tornou-se para alguns amadores de arte – os Ephrussi, os Camondo – uma espécie de
religião.»
Foi
esta atmosfera que levou à primeira exposição de A Grande Onda no Ocidente, realizada, como se disse, em Abril de
1868 nas Galeries Georges Petit, em Paris. De acordo com o catálogo, foram
expostas diversas obras de Katsushika Hokusai, pertencentes às colecções de Théodore
Duret e de Louis Gonse, que, na introdução, apelida Hokusai de «grande mestre
da vida e do humor». Enquanto Sarah Bernahrdt apresentava apenas uma peça, a
colecção de Siegfried Bing era representada por um número impressionante de 659
peças. A colecção de Théodore Duret tinha 28 entradas com obras de Hokusai,
entre as quais três volumes de Cem Vistas
sobre o Monte Fuji A colecção de Louis Gonse, a mais extensamente
representada, tinha 1123 entradas no catálogo. Com o nº 1001bis, «Le recueil complet des Trente-six grandes vues en couleur du
Foussiyama».
Sem comentários:
Enviar um comentário