quinta-feira, 15 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 25

 
 



                24.
 
         Naquele que é um dos relatos mais completos – porventura, o mais completo – sobre a projecção cultural de A Grande Onda, intitulado Hokusai’s Great Wave. Biography of a Global Icon (Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015), Christine M. E. Guth cita uma observação interessante, feita por Michael Baxandall em Patterns of Intention. On the Historical Explanation of Pictures (Yale University Press, 1985), a propósito de alguma obsessão dos críticos e dos historiadores de arte em descortinar os jogos de influências estéticas entre os diversos criadores:
«if one says that X  influenced Y it does seem that X did something to Y rather than Y did something to X. But in consideration of good pictures and painters, the second is always the more lively reality.»
Será difícil, no entanto, ultrapassar um paradigma e um modelo de pensamento e abordagem há muito enraizados na crítica artística, como o demonstra, aliás, o livro de Christine M. E. Guth, que percorre diversos exemplos da influência exercida pela Grande Onda enquanto «ícone global».
Se existem casos em que a «influência» de A Grande Onda é mais difusa e fugidia, noutras situações a homenagem a Hokusai é assumida de forma totalmente explícita. Mais do que uma fonte de inspiração, há uma procura deliberada de mimetização ou emulação do seu trabalho, como fica patente num exemplo fornecido por Christine Guth, a litografia de Paul Gaugin Les drames de la mer, de 1889 (em inglês, Dramas of the Sea: Descent into Maelstrom), pertencente à Rosenwald Collection da National Gallery of Art, de Washington, e que se destinava a ilustrar um conhecido conto de Edgar Allan Poe, A Descent into the Maelström, publicado em Abril de 1841 na Graham’s Magazine. A litografia de Gaugin baseia-se abertamente numa «variação» das ondas de Hokusi realizada por Utagawa Sadahide (18071878-79), datada de circa 1850 e que integra a colecção do Victoria and Albert Museum de Londres. Curiosamente, eventualmente por lapso, na descrição desta peça constante do catálogo online do Victoria and Albert Museum (aqui) não é mencionado o nome do autor, a data ou sequer o nome por que é designado por Christine Guth, The Seaweed Gatherer.     
 

Victoria and Albert Museum, Londres
E.4940-1919
 
Paul Gaugin, Les drames de la mer, litografia, 1889
National Gallery of Art, Washington, 1950.16.64

 
 
 
 
Na mesma linha de influência explícita e directa – que, estranhamente, Christine M. E. Guth não refere – pode mencionar-se o livro de Roger Joseph Zelazny (1937-1995) 24 Views of Mt. Fuji, by Hokusai, de 1985, do qual existe uma recente tradução francesa, 24 Vues du Mont Fuji, par Hokusai (Saint Mammés, Le Bélial, 2017), tendo sido essa a edição consultada.
 

 
 
 
Saída originalmente nas páginas da Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine, no seu número de Julho de 1985 (e integrado na colectânea Frost & Fire, de 1989), a novela de Roger Zelazny teve uma tradução francesa muito recente, de Novembro de 2017, como se disse; antes disso,  já tinha sido traduzida na Alemanha, em 1987, o Japão, em 1992, em Itália, em 1993, e na Lituânia, em 1999, de acordo com a informação disponível em The Internet Speculative Fiction Database (ISFDB Science Fiction) (aqui).
         A novela de Zelazny foi galardoada em 1986 com o Prémio Hugo. Instituído desde 1953, sendo uma das mais prestigiadas (e, provavelmente, a mais conhecida) distinções no campo da literatura de ficção científica, o Prémio Hugo tem três categorias – «best novel», «best novella» e «best novelette» – tendo o livro do autor de The Cronicles of Amber recebido o prémio na categoria de «best novella».
No mesmo ano em que foi galardoado com o Prémio Hugo, 24 Views of Mt. Fuji, by Hokusai foi nomeado para o Prémio Nebula, da Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA), e ficou em quinto lugar na candidatura ao Prémio Locus. Dada a sua recente tradução para francês, a obra de Zelazny encontra-se nomeada para o Prémio Imaginaire (mais precisamente, o Grand Prix de l’Imaginaire) na sua edição de 2018, na categoria de «novela estrangeira» (ver aqui)
         O enredo pode resumir-se em poucas palavras: tomando como guia o livro Hokusai’s Views of Mt. Fuji, editado por Easley S. Jones e publicado por Charles Tuttle Publishers em 1965 (que serviu também de fonte a Zelazny), Mari, uma viúva, percorre os caminhos de 24 vistas do Monte Fuji desenhadas por Katsushika Hokusai, entre as quais a de A Grande Onda. Procura o seu marido, já morto mais ainda presente sob forma digital.
         Na breve nota introdutória, Zelazny recorda a influência que sobre ele tiveram o livro de estampas de Hokusai e, por outro lado, a vista das montanhas que contemplava no seu escritório: «sem as montanhas», diz Zwelazny, «não haveria meditações, não haveria texto, não haveria prémio Hugo.»
         E o capítulo dedicado à Grande Onda começa assim:
«A grande vaga, que se enrola e levanta, prestes a engolir os frágeis barcos. A gravura de Hokusai que todos conhecem.
Não sou surfista e não procura a onda perfeita. Contento-me em ficar ali, na costa, a contemplar a água. É suficiente. A minha peregrinação aproxima-se do seu termo, ainda que não esteja concluída.
Bem… vejo o Fuji. Representa o fim. Como no barril da primeira estampa, o círculo fecha-se em seu redor.»
 
 
 
 
 
 


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