quarta-feira, 21 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 31

 



         31.
 
         Em A Grande Onda surgem três embarcações em primeiro plano, no espaço central da imagem.
         A disposição espacial das embarcações é dos elementos que mais força conferem à xilogravura de Hokusai. A embarcação situada no segundo plano, à direita da imagem, aparece desenhada em toda a sua extensão, o que permite perceber de que tipo se trata, o que para os japoneses da época (e nunca se esqueça a dimensão comercial do trabalho de Hokusai) constituía um detalhe importante em termos de reconhecimento, percepção e familiarização com a gravura.
         O traço de Hokusai acompanha o formato esguio das embarcações moldando as ondas do mar a esse perfil afilado e curvo, a ponto de nos interrogarmos se são os barcos que parecem ondas ou vice-versa.
         O dinamismo da imagem é adensado pelo facto de, à excepção da embarcação que fica no lado direito da imagem, as outras duas só são parcialmente visíveis, escondidas que estão pelas ondas revoltas. Adivinha-se mesmo que a grande onda vá rebentar sobre a embarcação da direita, prestes a ser tragada pelo mar em fúria. La Menace suspendue, foi o feliz título encontrado para um documentário sobre A Grande Onda, realizado por Alain Jaubert em 1999.
         O exercício de ocultação parcial das embarcações é levado ao extremo, num golpe de génio, porquanto há três pontos brancos no lado esquerdo da imagem que quase se confundem com três cabeças de tripulantes de um barco ausente; na verdade, são salpicos das ondas do mar, de forma esférica. Os salpicos das ondas têm uma dimensão desmesurada, quase idêntica – ou até superior – à dos rostos dos marinheiros, pescadores de bonito.  
         O facto de os barcos – e das ondas – se encontrarem sobrepostos em três patamares ou camadas confere profundidade à imagem e, acima de tudo, reveste-a de um movimento que é invulgar nas xilogravuras da época, marcadas pela placidez e pelo imobilismo característicos do «mundo flutuante».
         Como referem Tadashi Kobayashi e Mark Harbison (Ukiyo-e: An Introduction to Japanese Woodblock Prints, Kodansha International, 1997, p. 47), os barcos da imagem são oshiokuri-bune, navios rápidos de carga que foram concebidos para o comércio de peixe mas que eram usados para o transporte de vários produtos, de peixe fresco ou seco a arroz, passando por vegetais e carvão.
         No seu estudo sobre a Grande Vaga, Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura citam um trecho da obra Unbeaten tracks in Japan, que a escritora de viagens, exploradora e fotógrafa vitoriana Isabella Bird (1831-1904) publicou em 1880. Ao relatar a sua chegada ao porto de Yokohama, em 1878, Isabella Bird – a primeira mulher a ser eleita fellow da Royal Geographic Society – deparou com oshiokuri-bune, que descreveu assim:
 
«The partially triangular shape of these boats approaches that of a salmon-fisher's punt used on certain British rivers. Being floored gives them the appearance of being absolutely flat-bottomed; but, though they tilt readily, they are very safe, being heavily built and fitted together with singular precision with wooden bolts and a few copper cleets. They are SCULLED, not what we should call rowed, by two or four men with very heavy oars made of two pieces of wood working on pins placed on outrigger bars. The men scull standing and use the thigh as a rest for the oar.»
 
Cartwright e Nakamura apresentam uma imagem do Museu Marítimo de Yokohama onde aparece o modelo de um barco oshiokuri, com três remos de cada lado e o mastro, já que, se o vento fosse favorável, o navio poderia navegar à vela. Dizem, a este propósito, que o oshiokuri pode ser integrado na categoria esquife (do lombardo skif, «barco», do italiano schifo ou do catalão esquif), o tipo de embarcação que surge em O Velho e o Mar, de Ernst Hemingway. O modelo apresentado no Museu Marítimo de Yokohama tem seis remos, ao passo que os barcos de A Grande Onda têm oito remos e, na descrição de Isabella Bird, os oshiokuri-bune surgem com apenas dois remos.




 
 
Uma outra obra de Katsushika Hokusai apresenta duas embarcações de dois remos. Trata-se de uma xilogravura igualmente inserta na série Trinta e Seus Vistas do Monte Fuji, intitulada Vista da Praia de Tago, Ejiri, na Estrada Tokaido, descrita aqui na colecção do Museu Britânico. Ou, mais decisivamente ainda, Vista ao Entardecer sobre a Ponte Ryogoku do Cais de Onmaya, da mesma série, descrita aqui.
 
 
Museu Britânico, 1937,0710,0.151
 
Museu Britânico, 1937,0710,0.140
 
 
Cartwright e Nakamura afirmam que os barcos avistados por Isabella Bird foram, provavelmente, tenma-sen e não oshiokuri. Também os que observamos nesta outra gravura de Hokusai parecem ser desse tipo (tenma-sem ou tenmsaen), sendo interessante a  descrição do construtor naval Douglas Brooks e esta informação.

 

 
 
No seu minucioso estudo, Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura, estranhamente, não analisam outras gravuras de Hokusai), a qual, segundo tudo indica, figuram igualmente oshiokuri, estando um deles, aliás, mais visível do que em A Grande Onda.  
 

 
 
 
Pela dimensão dos navios – de 12 a 15 metros de comprimento –, calcula-se que a grande onda desenhada por Katsushika Hokusai tem uma 10 a 12 metros de altura.
 
 
 
 

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