sexta-feira, 30 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 38

 
 
 

 
38.
 
Em 1953, o Gabinete do Turismo do Japão (em inglês, Japan Travel Bureau) publicou o livro Japanese Wood-Block Prints, da autoria de Shizuya Fujikake, sendo esta a terceira edição da obra, após ter sido publicada em 1938 e em 1949.
 
O livro é o décimo volume da Tourist Library Series, iniciada pelo Conselho da Indústria do Turismo em 1934 e transferida em 1943 para o Gabinete do Turismo do Japão (para uma descrição dos primeiros 40 volumes desta colecção, ver aqui; muitos dos volumes encontram-se disponíveis online, aqui).

 

Shijuya Fujikake, Japanese Wood-Block Prints,
Edição de 1953
Colecção particular de António Araújo

 
 
 
Trata-se, como é fácil perceber, de uma colecção de monografias sobre diversos aspectos da realidade japonesa – a arte floral, o culto do chá, o quimono, o teatro kabuki, o bonsai, os netsuke – que procuram prestar ao leitor uma informação sumária do Japão, mas ainda assim com algum desenvolvimento (cada livro tem aproximadamente 200 páginas), sendo as obras profusamente ilustradas a preto e branco e a cores, contendo um índice remissivo e um índice onomástico. Sendo patente o propósito de divulgação em larga escala, não pode, todavia, considerar-se as obras desta série – e o livro de Shizuya Fujikake em particular – um mero panfleto turístico.   
 
Em suma, os livros desta colecção − desta colecção «oficial» − representavam, por assim dizer, o «retrato» que, pela pena de especialistas das mais diversas áreas, o Japão e o seu governo pretendiam projectar para o exterior, tendo, pois, um valor muito interessante para a percepção das estratégias e dos discursos que o país construía em seu redor e da sua auto-imagem.
 
O livro de Fujikake foi objecto de, pelo menos, 53 edições, de 1938 a 2016, o que atesta a perenidade do interesse por esta obra e o volume de leitores que alcançou, ao longo de várias décadas, em todo o mundo, verificando-se, por outro lado, que a obra continua a ter utilidade enquanto fonte de informação sobre as xilogravuras japonesas (um outro livro de Fujikake, An Introduction to Japanese Art, teve apenas seis edições e, 1936 e 1937; o autor tem alguns livros sobre o universo do ukiyo-e que tiveram mais edições, mas todas em japonês e quase todas anteriores à década de 1950; ver aqui).
 
Trata-se, pois, de um livro que teve – e, de certo modo, ainda tem – uma importância apreciável para a divulgação da arte das xilogravuras japonesas no exterior do país e, como se viu, como indício revelador do modo como os japoneses percepcionavam essa arte até muito recentemente.
 
         O seu autor, Shizuya Fujikake (1881-1958), tinha sido professor da Universidade de Tóquio e, na altura em que escreveu este livro, integrava a comissão constituída para designar os tesouros nacionais do Japão. Na nota introdutória, Fujikake afirma que o livro foi escrito devido a uma exortação de William Hartnett. No influente The Floating World, James A. Michener apelida-o «the beloved dean of ukiyo-e», o que, tendo em conta a importância do contributo de Michener para a difusão mundial das xilogravuras japonesas (cf. Notas sobre A Grande Onda – 35) torna este livro de Fujikake especialmente importante para a compreensão do contexto cultural em que, no Japão e no resto do mundo, a obra de Hokusai adquiriu em meados do século XX.  
 

Museu Britânico, 1996, 1009, 0.24

 
 
         No Museu Britânico, existe uma xilogravura de Shizuya Fujikake vestido de quimono, da autoria de Kitaoka Fumio e datada de 1951 (descrita aqui). Por sua vez, o livro da sua autoria tem também uma gravura sua, datada de 1949 e feita por Kōshirō Onchi, e de que existe um exemplar no Museum of Fine Arts de Boston (descrição aqui).
 


Museum of Fine Arts of Boston, 57.586
 

 
 
         No que se refere à Grande Onda de Katushika Hokusai, é habitual afirmar-se, e com razão, que a valorização de que foi alvo no Ocidente não tem paralelo no seu país de origem. Só por volta de 2005, ano da grande exposição sobre a obra de Hokusai no Museu Nacional de Tóquio, é que os japoneses começaram a referir-se afectuosamente a ela como «Grande Onda» (gureito weibu). No Japão, a obra mais popular de Hokusai era Vento do Sul, Céu Limpo (Geifū kaisei), vulgarmente chamado «Fuji Vermelho» (Aka Fuji), não A Grande Onda (cf., exemplo, Timothy Clark, Hokusai’s Great Wave, Londres, The British Museum Press, 2011, p. 23; é sintomático que seja essa obra que surge na edição de 1938 de Japanese Wood-Block Prints).   
 

Edição de 1938

 
 
         O livro de Shizuya Fujikake confirma esta percepção. Desde logo, há uma preocupação evidente em infirmar a ideia corrente segundo a qual a xilogravura japonesa se cinge aos «mundos flutuantes», razão pela qual o autor começa por narrar a história daquela arte nipónica desde o século XI ao século XVI, procurando evidenciar, do mesmo passo, a sua ancestralidade. Por outro lado, é conferido grande destaque ao período contemporâneo: mais de metade do livro trata das xilogravuras do século XX e, muito em particular, das xilogravuras que foram produzidas no Japão  à data em que a obra estava a ser escrita, para o que não deve ser alheia a intenção propagandística ou promocional da obra; por outras palavras, do ponto de vista da projecção externa do Japão, o fulcro da Tourist Library Series, interessava acima de tido valorizar o país na actualidade, mais do que produzir obras de natureza histórica que lidassem com realidades pretéritas ou definitivamente situadas no passado. Havendo, pois, que demonstrar a vitalidade da arte das xilogravuras, que a mesma continuava a ser praticada por artistas contemporâneos de qualidade e talento, importava não fornecer uma perspectiva excessivamente historicizada e, menos ainda, exclusivamente ligada à estética e à doutrina dos «mundos flutuantes». Não admira, pois, que, logo nas primeiras linhas da introdução, Fujikake afirme: «As is well-known, ukiyoe [sic] prints have long enjoyed a worl-wide fame. But Japanese wood-block prints are not represented solely by ukiyoe, there being also modern prints, produced by a new technique and showing a modern sense of beauty». Em larga medida, na verdade, o interesse do livro reside mais na digressão que faz pela obras de artistas do século XX do que pelos capítulos dedicados a mestres como Hokusai ou Hiroshige. É também sintomático que a Tourist Library Series, que publicou dezenas volumes, tenha dedicado uma monografia a Hiroshige (logo no nº 2 ou nº 5 da colecção, da autoria de Yone Noguchi), mas nenhuma a Hokusai, o que comprova que no Japão e no estrangeiro, durante muito tempo e junto de diversos coleccionadores (Frank Lloyd Wrigth ou James A. Michener, por exemplo), Hiroshige gozou de maior apreço do que o autor de A Grande Onda.
 
         Neste livro de Fujikake, em que se acumulam louvores à arte das xilogravuras (um dos capítulos intitula-se, não por acaso, «Why Japanese Prints are Unique»), no final há uma breve nota biográfica de Hokusai, a par da de muitos outros artistas, dizendo-se que a sua obra mais representativa é Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji e afirmando-se, de igual modo, que o seu autor foi «o máximo expoente dos artistas ukiyoe até ao fim do período Edo». A «idade de ouro» (sic) das gravuras japonesas é, no entanto, situada numa fase anterior à da produção de Katsushika Hokusai, que, em conjunto com Hiroshige Utagawa, é enaltecido na monografia de Fujikake como os dois nomes que, no seu tempo, mais se destacaram. Afirma-se, todavia, que a escassez de grandes mestres, em confronto com épocas passadas, demonstrava que o apuro da técnica não tinha sido acompanhado de um aumento de inventividade, escrevendo-se mesmo, em tom crítico, que «se o artista ou o editor tivessem orientado melhor os artesãos, ter-se-iam produzido obras de ainda maior qualidade». E, diz Fujikake, que nesse tempo os editores começaram a pensar mais no lucro do que na qualidade artística, preferindo «fazer produções em larga escala do que criar coisas belas». «Isso, naturalmente, levou à deterioração das gravuras policromáticas como obras de arte», é o juízo crítico de Japanese Wood-Block Prints, obra que sustenta ainda que se Hokusai e Hiroshige tinham  preocupações estéticas mais apuradas do que os seus editores, a vontade deste acabou sempre por prevalecer. Daí a apreciação algo negativa que, mesmo que de uma forma não totalmente explícita, Shizuya Fujikake acaba por fazer das xilogravuras do período Edo e, em particular, das obras da autoria de Hiroshige e de Hokusai. Note-se, para mais, que tal apreciação constava de um livro produzido em larga escala, e traduzido em inglês, que se destinava a apresentar, em termos turísticos e promocionais, aquilo que de melhor ou de mais singular o Japão oferecia ao mundo.
 
         Quanto à Grande Onda, é bastante eloquente o facto de não ser ela, mas outra obra de Hokusai, que surge reproduzida a cores, a toda a largura da página, sendo a opus magnum do pintor e ilustrador colocada sem relevo algum, a par do já citado «Fuji Vermelho» e de dois trabalhos de Hiroshige.
 
 
 
 
 
 
 
         Trata-se de um detalhe revelador: no início da década de 1950, quando James A. Michener escreveu sobre Hokusai nas páginas da Reader’s Digest  (1954) e Hergé o utilizou numa vinheta da edição colorida de Os Charutos do Faraó (1955), a Grande Onda já tinha «estatuto» para figurar necessariamente numa monografia dedicada às xilogravuras japonesas. Não possuía, no entanto, a aura de «ícone planetário» que hoje detém; o livro de Fujikake não lhe dedica uma linha, utilizando-a tão-só como ilustração com a legenda «Monte Fuji visto de Kanagawa».
 
         No destino posterior de A Grande Vaga, o Ocidente teve um papel determinante, iniciando ou aprofundando um processo que culminou na abertura em Tóquio do Sumida Hokusai Museu, inaugurado apenas em Novembro de 2016. Trata-se de um movimento cultural tão curioso como complexo: incorporando elementos de raiz europeia (a perspectiva, o azul-da-Prússia), A Grande Onda começou por alcançar maior projecção no Ocidente do que no seu país de origem, mas, paradoxalmente, é vista pelos ocidentais como a quintessência de uma imaginária ou imaginada «identidade nipónica». Por outro lado, e mais decisivamente, a gravura de Hokusai começou a ser assimilada pelos japoneses como traço ou emblema da sua identidade – pelo menos, da identidade que se pretende projectar no exterior. A onda recebeu elementos do Oeste, levados pelos holandeses; depois regressou ao Ocidente pela mão de japonistas de diversas épocas e vários lugares; há pouco, foi devolvida ao Japão, que até há pouco não a tinha como sua nem sequer a valorizava especialmente, como o demonstra o livro de Shizuya Fujikake, porventura das obras mais marcantes na divulgação da cultura japonesa de meados do século XX.    
         
 
 
 
        
 
 
 
 



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