segunda-feira, 26 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 35

 
 




       35.
 
«an almost perfect piece of art that has also been enjoyed by people of all lands» − esta apreciação de A Grande Onda, seguramente banal, foi proferida por um dos mais prolíficos e populares escritores norte-americanos do século XX, James Albert Michener   (1907-1997), autor de dezenas de best-sellers que, geralmente sob a forma de sagas familiares, contam, ao longo de várias gerações, a história de lugares tão diversos como o Texas, o Alasca, o Afeganistão, as Caraíbas, a África do Sul, o México, a Polónia ou o Havai.
 
Aquela frase de Michener foi escrita num breve artigo intitulado «The Magic Hand of Hokusai», que a revista Reader’s Digest publicou na sua edição de Junho de 1959 (vol. 74, pp. 236-240; uma selecção de 25 textos de Michener na Reader’s Digest  foi reunida Ben Hibbs (ed.), A Michener Miscellany, 1950-1970, Random House, 1973); nesse artigo, o escritor norte-americano apelidava Hokusai «one of the most famous and popular artists in Japan and one of the last and most giftet practicioners of the art called ukiyo-e».
 
O texto saído na Reader’s Digest correspondia à súmula de um livro que o escritor publicara anos antes, em 1954, com o título The Floating World  (reed. com comentário de Howard A. Link, The University of Hawai‘i Press, 1984), o qual, como o nome indica, se ocupa das gravuras japonesas do «mundo flutuante» (ukiyo-e).
 
         De acordo com Christine Guth, professora no Royal College of Art e no Victoria and Albert Museum, e autora de Hokusai’s Great Wave. Biography of a global icon (Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015), o livro The Floating World, de James Michener, reimpresso mais de dez vezes, foi «arguably the single most influential American publication on Japanese prints» (ob. cit., p. 103; sobre o papel de Michener na difusão de uma certa ideia de Oriente, cf. a exposição desenvolvida de Christina Klein, Cold War Orientalism. Asia in the Middlebrow Imagination, 1945-1961, Berkeley, University of California Press, 2003, pp. 117ss, e bibliografia citada).
 
Se a isso juntarmos o número de assinantes e leitores da Reader’s Digest em todo o mundo (no início dos anos 1960, a revista vendia cerca de 23 milhões de exemplares, sendo editada em 40 países, aqui), concluiremos, sem receio de exagero, que James A. Michener terá sido um dos principias, se não o principal, divulgador da obra de Katsushika Hokusai no pós-2ª Guerra Mundial, dando um contributo decisivo para a popularidade que actualmente têm os trabalhos do mestre japonês, muito especialmente A Grande Onda.    

 
James A. Michener (1907-1997)
 
 
 
Michener retomará o tema em textos subsequentes: na introdução ao livro de Oliver Statler  (1915-2002) Modern Japanese Prints: An Art Reborn, de 1956; em The Hokusai Sketchbooks: Selections from the Manga (1958); em Japanese Prints: From the Early Masters to the Modern (1959) e, por fim, em The Modern Japanese Print: An Appreciation (1968; a edição original de 1962 teve uma tiragem limitada de 475 exemplares).
 
O interesse do escritor pela Ásia – e pelo Pacífico, em especial – remonta aos alvores da sua carreira literária, após ter cumprido serviço militar na zona do Pacífico Sul durante a 2ª Guerra, sendo-lhe atribuídas várias missões por engano, porquanto os seus superiores hierárquicos julgavam que James A. Michener, integrado na Marinha dos Estados Unidos, era filho do almirante Marc Andrew «Pete» Mitscher  (1887-1947), que pela mesma altura comandava uma força naval naquela região. Na realidade, James Michener, segundo o próprio, nunca conheceu os seus verdadeiros pais (nem sequer a data e o local de nascimento), tendo sido criado em Bucks County, na Pensilvânia, por uma mãe adoptiva, Mabel Michener.
 
Antes sequer do ataque a Pearl Harbour, ocorrido em Dezembro de 1941, Michener estava convicto de que a guerra era inevitável e foi um decidido defensor da entrada dos Estados Unidos no conflito, publicando um texto inflamado em que enumerava as razões pelas quais os seus compatriotas deveriam apoiar o país em armas (cf. Marilyn S. Severson, James A. Michener. A Critical Companion, Westport, Conn.-Londres, Greenwood Press, 1986, p. 54; cf. tb. John Phillip Hayes, James Michener. A Biography, Indianápolis, Bobbs Merrill, 1985; Steven J. May e Valerie Hemingway, Michener: A Writers Journey, Norman, Oklahoma, University of Oklahoma Press, 2005).
 
Nas suas memórias, Michener referiu que, como quaker, estava isento do serviço militar mas recusou-se a usar a religião para se furtar à guerra: «como professor de História sabia que Hitler e o Japão eram uma ameaça terrível para a civilização mundial», escreveu em The World is My Home. A Memoir (Nova Iorque, Random House, 1992, p. 6). A experiência de guerra levá-lo-ia a escrever o seu primeiro livro, Tales of the South Pacific (Nova Iorque, Macmillan, 1947), galardoado com o Prémio Pulitzer de Ficção em 1948, sendo adaptado a um musical da Broadway no ano seguinte e ao cinema em 1958 (em 2001, foi também realizado um telefilme a partir de Tales of the South Pacific e antes disso, em 1992, com base naquele musical da Broadway, Michener publicaria o breve livro South Pacific).
 
A partir daí, e apesar de tardia, iniciou-se uma carreira de enorme sucesso, calculando-se que os seus romances tenham vendido cerca de 75 milhões de exemplares em todo o mundo, facto que, apesar disso, não demoveria muitos críticos da sua obra, que sempre a consideraram demasiado «fácil» e «comercial», destinada a um público massificado, pouco culto e exigente.    
 
Alguns dos seus livros têm o Oriente como cenário, de que são exemplos The Bridges of Toko-Ri, de 1953, passado na Guerra da Coreia (e adaptado ao cinema por Mark Robson em 1954, com Grace Kelly e William Holden nos principais papéis); Return to Paradise (Random House, 1951)  ou Sayonara (Random House, 1954; também com adaptação cinematográfica de 1957, realizada por Joshua Logan e com Marlon Brando como protagonista)
 
Sayonara, com o expressivo subtítulo «A Japanese-American Love Story», é uma novela com um forte cunho autobiográfico, pois narra a história de um oficial estacionado no País do Sol Nascente que se apaixona por uma japonesa, debruçando-se, em termos considerado pioneiros, sobre os conflitos étnicos ou raciais que daí resultam (cf. Marilyn S. Severson, ob. cit., pp. 24ss). Por essa altura, Michener conhecera Mari Yoriko Sabusawa (1920-1994), uma mulher de ascendência japonesa que, apesar de ter a cidadania norte-americana e de nunca ter visitado o Japão, fora detida com os seus pais num dos vários campos de internamento que o governo dos Estados Unidos estabeleceu na 2ª Guerra para acolher preventivamente famílias de etnia nipónica que vivessem na Costa Oeste do país.   
 

Mari Yoriko Sabusawa (1920-1994)

 
James Michener divorciou-se da sua segunda mulher e casou com Mari Sabusawa em Outubro de 1955. A sua nova (e última) mulher – que após concluir o liceu trabalhara para os serviços de informações dos Estados Unidos, traduzindo propaganda de guerra japonesa, e mais tarde foi editora do boletim da American Library Association – acompanhou Michener quando este se envolveu activamente na Revolução Húngara de 1956, tendo o casal acolhido na sua casa de Viena diversos refugiados do regime pró-soviético instituído em Budapeste, experiência que o escritor utilizaria na novela The Bridge at Andau, de 1957.

 

         Ligado ao Partido Democrata, pelo qual, com a oposição da mulher, teve uma efémera e mal sucedida carreira política (em 1962 candidatou-se, sem sucesso, à Câmara dos Representantes pela Pensilvânia, nas listas daquele partido), Michener sempre teve um vivo repúdio, típico da Guerra Fria, pelos regimes comunistas da Europa de Leste, sobre os quais escreveria livros de viagens (Pilgrimage: a Memoir of Poland and Rome, 1990) mas também romances de grande êxito, com destaque para Poland, de 1983, na altura proibido pelas autoridades polacas. A aversão era recíproca: em 1968, Michener não pôde dar uma conferência na Universidade de Caracas devido a ameaças de morte de grupos de estudantes comunistas, o que não impediria o FBI de Edgar Hoover de acumular um extenso dossier sobre as supostas actividades comunistas do escritor, como este refere nas suas memórias (ob. cit. p. 183). Sem ser, de modo algum comunista, Michener não hesitaria em criticar o sistema político norte-americano, designadamente o método de eleição do Presidente dos Estados Unidos, Presidential Lottery: The Reckless Game in Our Electoral System, de 1969, alvo de reedições em 2014 e em 2016 (Michener contaria a sua experiência como «grande eleitor» de Kennedy em Report of the County Chairman). E em Kent State: What Happened and Why, de 1971, debruçou-se sobre o tristemente célebre massacre ocorrido em Maio do ano anterior na Kent University, em Ohio. Nunca enveredou, porém, pelo antiamericanismo e, ao invés, foi até ao fim da vida um defensor das virtudes e valores de uma certa «americanidade» liberal-conservadora, presente nas suas obras de ficção como Chesapeake Bay ou Space ou em livros como This Noble Land. My Vision of America, publicado um ano antes de morrer, e onde analisa questões como o racismo, o consumismo e o machismo, os sistemas educativos e de saúde, a crise da família, a distribuição de riqueza ou o papel da arte nas sociedade.
 
A proximidade de Michener ao Extremo-Oriente ficou patente em obras como The Voice of Asia  (1951), resenha de crónicas de viagens pelo Japão, Coreia, Hong Kong, Singapura, Paquistão, Índia, Tailândia, etc. Ao Pacífico Sul dedicaria o livro Rascals in Paradise: True Tales of High Adventure in the South Pacific  (1957), redigido em co-autoria com o professor da Universidade do Havai Arthur Grove Day (1904-1994).        
 
Em 1959, ano em que publica o texto sobre Hokusai nas páginas da Reader’s Digest, James A. Michener dá à estampa Hawaii, livro vindo a lume exactamente na mesma altura em que aquele território se tornava o 50º Estado da Federação norte-americana. Na investigação para essa obra (Michener era um pesquisador laborioso para os seus livros) e durante a sua escrita, o autor e a sua mulher, Mari, viveram no Havai uma larga temporada e daí surgiu a ligação à Academia de Honolulu. O interesse pelas gravuras do período Edo era, contudo, muito anterior e, segundo diz Michener nas suas memórias, surgiu por uma casualidade, em data que não especifica, quando viu a reprodução de uma bela paisagem nas páginas de uma revista, que julgou ser de um autor chinês, tendo anotado o nome do artista, Hiroshige. «That introduction started me on the way to meet some of the most congenial artist in world history, a collection of men who in the eigheenth and the nineteenth centuries would produce a wealth of rather small woodblock prints that have never been excelled or even equaled: Masanobu, Harunobu, Kiyonaga, Utamaro, Sharaku, Hokusai in more or les chronological order.» Acrescenta, com orgulho e exagero de coleccionador: «I become such a devotee that I would in time own one of the major private collections of their art, some six thousand prime examples.» (ob. cit. p. 111).   
 
James Michener e Mari Sabusawa

 
         O gosto pela arte japonesa terá sido influenciado pela sua mulher ou, pelo menos, partilhado com ela, devendo recordar-se que Mari Yoriko Sabusawa sempre manteve uma forte consciência das suas raízes nipónicas, tendo sido uma influente activista a favor dos casamentos mistos entre americanos e japoneses, na década de 1950.   
 
O casal sempre se notabilizou pelas suas actividades filantrópicas, graças às quais alguns museus podem hoje existir ou exibir colecções de grande interessem (sobre a filantropia de Michener, cf. Marilyn S. Severson, ob. cit., pp. 14-15). Ao falecer de cancro em Austin, no Texas, em Setembro de 1994, Mari Sabusawa legou cinco milhões de dólares para a construção do Blanton Museum of Art (https://blantonmuseum.org/), enriquecido com várias obras de arte que os Michener coleccionaram ao longo da vida. James, por sua vez, doou cerca de 37 milhões de dólares à Universidade do Texas, sendo o maior benfeitor individual daquela instituição, a par de outras que receberam o seu apoio, incluindo o James A. Michener Art Museum (https://www.michenerartmuseum.org/), em Doylestown, na Pensilvânia, onde existe o Nakashima Reading Room, criado em memória da sua mulher.
 

Honolulu Museum of Art, 13695
Doação de James A. Michener, 1955 (13695)



 
A Honolulu Academy of Arts (https://honolulumuseum.org/), no Havai, fundada em 1922 por Anna Rice Cooke, tem um exemplar de A Grande Onda (descrição aqui)graças à doação feita por James Michener e pela sua mulher, que legaram àquela instituição a maioria das 5.400 gravuras do «mundo flutuante» (muitas delas da autoria de Hokusai e de Hiroshige) que Michener adquiriu em conjunto em 1957, no leilão da colecção de Charles H. Chandler, reunida no início do século XX. De acordo com o site da Honolulu Academy of Arts, a colecção de 10.000 xilogravuras, metade das quais foram doadas por James Michener e Mari Sabusawa, é a «jóia da coroa» (sic) do acervo de arte japonesa daquele museu. A colecção de Michener começou quando, na sequência da publicação de The Floating World, em 1954, Georgia Forman, uma coleccionadora de Buffalo, Nobva Iorque, que o escritor não via há 25 anos, lhe ofereceu um «selecção» de gravuras do «mundo flutuante»; em 1957, como se disse, Michener comprou as 4.533 gravuras da colecção de Charles H. Chandler, umas das mais importantes dos Estados Unidos, de o escritor que fez um empréstimo de longa duração à Honolulu Academy of Arts ainda nos finais da década de 1950. Em 1970, o director daquele museu, James W. Foster, criou o Ukiyo-e Center e em 1988 James Michener doou a esse centro uma apreciável quantidade de gravuras, complementando a doação em 1991, num total de 5.400 peças do «mundo flutuante»
 
Charles H. Chandler é considerado, juntamente com Clarence Buckingham, Frederick W. Gookin, J. Clarence Webster, Charles J. Morse e Frank Lloyd Wright, um dos pioneiros no coleccionismo de ukiyo-e nos Estados Unidos, ponto salientado desde há muito (cf. este texto de Julia Meec-Pekarik, sobre o coleccionismo de Wright, com referência a Chandler). Foi, aliás, o próprio James Michener que o notou, ao escrever o prefácio para o catálogo da exposição de gravuras japonesas levada a cabo em Março-Abril de 1955 no The Art Institute of Chicago (cf. James A. Michener, «Foreword», Japanese Prints, The Art Institute of Chicago, 1955, s./p., disponível aqui).
 
Nesse breve texto, Michener evidencia um conhecimento preciso do modo como as gravuras do ukiyo-e foram sendo conhecidas no Ocidente, destacando a Exposição Universal de Paris de 1867, as exposições que tiveram lugar em 1888 no Burlington Fine Arts Club de Londres e, no ano seguinte, no Grolier Club de Nova Iorque. O autor de Sayonara realça, acima de tudo, as mostras patentes em Paris de 1909 a 1940 e a exposição da obra de Sharaku que se realizou em Nova Iorque, no Museum of Modern Art, de 3 de Abril a 1 de Maio de 1940 (aqui).
 
A exposição leva a cabo no The Art Institute of Chicago de 10 de Março a 17 de Abril de 1955, onde foram exibidas 350 peças dos mestres da xilogravura japonesa, constituía, segundo Michener, o corolário daquele movimento, que a guerra interrompera; mas, ao ter lugar naquela cidade, era também uma homenagem ao que Michener apelida «The Chicago Graze», a febre de um grupo de coleccionadores cujos nomes atrás de citaram e onde se inclua Charles H. Chandler, cuja colecção James Michener irá adquirir en masse. Entre as obras exibidas, e com o nº 302, «Mount Fuji Seen from the Hollow of the Deep Sea Wave off Kanagawa».  
 
A exposição de Chicago tem lugar dez anos após o fim da 2ª Guerra Mundial, em que a campanha no Pacífico teve um papel muito importante na familiarização de milhares de soldados com a cultura oriental e, em particular, com a cultura japonesa, sendo uma das causas da difusão, em larga escala, das imagens do «mundo flutuante» na América do pós-guerra. James Michener é, aliás, um bom exemplo disso, o mesmo sucedendo com Oliver Statler, de que adiante se falará.
 
Christine Guth assinala que a ocupação americana do Japão, de 1945 a 1951, com a passagem por esse país de mais de 500 mil militares e civis norte-americanos, fez crescer exponencialmente a compra de xilogravuras do «mundo flutuante» por cidadãos comuns, que assim adquiriam, até como recordação de viagem ou souvenir exótico, uma forma de arte «fácil», quer em termos estéticos, quer em termos «logísticos», do ponto de vista de transporte das peças para os Estados Unidos. Um comerciante de arte japonês, Watanabe Shōzaburō, intuiu essa ímpar oportunidade de negócio e colocou centenas ou mesmo milhares de gravuras nos postos de correio, onde eram comprados por indivíduos que jamais pensariam ir a uma galeria de arte.   
 

Life, Novembro de 1943

 
         Era notória a evolução verificada relativamente aos tempos de guerra, em que, como observa Christine Guth (ob. cit., p. 109), as xilogravuras japonesas eram usadas para ilustrar artigos sobre o belicismo nipónico, como aconteceu com um artigo saído nas páginas da Life em Novembro de 1943 e intitulado «The 47 Rōnin», no qual «onze gravuras de Hokusai do Museu de Boston» acompanhavam um texto sobre uma famosa peça de teatro kabuki e os códigos de honra dos samurais que, a propósito do comportamento dos japoneses na guerra, referia: «Their militar behavior in this war has revealed a cold-blooded ruthlessness not only towards their enemy but also towards themselves, that has schocked us.»


Oliver Hadley Statler (1915-2002)
 


Não muito depois de ter escrito o texto introdutório do catálogo da exposição de Chicago, James Michener regressará ao tema das xilogravuras japonesas ao redigir, como atrás se disse, um prefácio para Modern Japanese Prints: An Art Reborn, livro de 1956, da autoria de Oliver Hadley Statler (1915-2002), cujo percurso biográfico corresponde precisamente aos daqueles que ficaram marcados pelo Japão devido à experiência de guerra. Nascido no Illinois em 1915, licenciado pela Universidade de Chicago, Statler serviu na frente do Pacífico, sendo colocado na Nova Guiné e nas Filipinas. Quando a guerra acabou, já se encontrava na América e tentou regressar à sua unidade e ser transferido para o Japão, pedido que seria negado, o que o levou a abandonar o exército e ingressar na função pública, sendo nessa qualidade que chegou a Yokohama em Abril de 1947. Permaneceu no Japão até Dezembro de 1954, onde viveu em Yokohama e Tóquio, exercendo funções como «budget and fiscal administrator». Com o fim da presença dos Estados Unidos no Japão, e com o término das suas funções, Statler permaneceu no país durante mais quatro anos, fazendo investigação e escrevendo. Sobre o seu interesse pelas xilogravuras japonesas e a amizade com Michener, dirá: «Early in my stay I saw a small exhibition of contemporary Japanese prints, mostly woodblocks. I fell in love with them, came to know many of the artists, and began a collection which now numbers well over a thousand prints and is at the Art Institute of Chicago. My interest in these then quite unknown prints brought an invitation to read a paper on them before the Asiatic Society of Japan in Tokyo in February 1955. Our mutual love of Japanese prints had led to a lasting friendship with James A. Michener. Michener recommended to Charles Tuttle that my paper be expanded into a book and the result was my first book, Modern Japanese Prints: An Art Reborn.»
 
Dois anos depois da publicação do livro de Statler, Michener dará à estampa The Hokusai Sketchbooks: Selections from the Manga (1958) e, logo a seguir, Japanese Prints: From the Early Masters to the Modern (1959). Em 1962, sairá, em tiragem limitada, The Modern Japanese Print: An Appreciation, reeditado em 1968.
 
Se é legítimo, do ponto de vista literário, menosprezar a qualidade da obra ficcional de James Michener, a sua importância como difusor da arte japonesa das xilogravuras dificilmente será sobrevalorizada. Mesmo que tenha actuado sobretudo como um divulgador, Michener, que nas suas memórias se classificou neste domínio como um «fourth-rate expert», revelava um conhecimento atento do ukiyo-e e a minúcia típica dos coleccionadores (ainda que, como se viu, a sua colecção tenha sido construída num ápice, de uma só vez, ao comprar a totalidade ou quase totalidade do acervo que Chandler constituíra décadas antes). Importa ter presente que, na época em que Michener escreveu – e até anos depois –, grandes divulgadores de arte continuavam a centrar as suas atenções no legado artístico do Ocidente. No extremamente popular Civilisation. A Personal View, de 1968, e na série televisiva da BBC com o mesmo nome, emitida no ano seguinte, Kenneth Clark (1903-1983) não aborda a arte oriental nem dedica uma linha a Katsushika Hokusai, o mesmo acontecendo – e essa lacuna será, porventura, mais grave – num outro livro da sua autoria, Landscape in Art, publicado pela primeira vez em 1949 e traduzido entre nós como A Paisagem na Arte (Editora Ulisseia, s.d.).    
 
Mesmo sendo dos primeiros grandes coleccionadores do pós-guerra («we begin to collect some six thousand of the finest prints in the low-priced days before the rest of the world beagn to prize them», escreve nas suas memórias), James Michener não foi, obviamente, o único a interessar-se e a escrever sobre xilogravuras japonesas naquela época. Ainda assim, estava ciente do contributo que deu para a difusão desta arte e para os elevados preços que as obras do ukiyo-e iriam alcançar: «The essays I had written about Japanese prints had helped spur such a tremendous interest in them that single prints for which we had paid perhaps five hundred dollars were now selling to Japanese businessmen, who were coming late into the market in an effort to recover national treasures, for two hundred thousand, while a complete set of some famous series by either Hokusai or Hiroshige might go for a million», lê-se em The World is My Home.   
 

Hiratsuka Un'Ichi, Retrato de James Michener
Xilogravura, 1957




 
No entanto, e a par da vertente de vulgarização que já se mencionou, o autor de The Floating World teve um papel importante ao questionar, pelo menos implicitamente, uma visão «ocidentalista» muito marcada nas abordagens clássicas da obra de Hokusai, com realce para a empreendida por Edmond de Goncourt na pioneira monografia que dedicou ao mestre japonês. Numa penetrante análise do japonisme de Goncourt, «Compare and Contrast: Rethorical Strategies in Edmond de Goncourt’s Japonisme», Pamela Warner sustenta, com copiosos exemplos, que uma das principais, talvez mesmo a principal, estratégia discursiva de Goncourt na aproximação à arte japonesa – e ao trabalho de Hokusai, em particular – passava pela busca de semelhanças com obras ou artistas ocidentais, procurando-se paralelismos à outrance, e considerando-se, contra um suposto academismo reinante, que a «grande arte», seja no Ocidente, seja a Oriente, se encontrava injustamente esquecida ou era lamentavelmente injustiçada. É, aliás, com esse lamento que Goncourt começa a sua monografia de Hokusai, dizendo, nas primeiras linhas, que era cometida, nos «dois hemisférios» (sic), a mesma injustiça para com os «talento independente do passado», numa alusão ao século XVIII que era, para Edmond e Jules, a «idade de ouro» devastada pela Revolução. Daí que fossem frequentes as comparações ou metáforas, dizendo-se que os nus de Hokusai «tinham algo de Mantegna», que as mães de Utamaro evocavam as madonnas renascentistas, que a «força» e o «poder» dos falos na arte erótica japonesa «igualavam» o desenho de uma mão feito por Miguel Ângelo e existente no Museu do Louvre.
 
Não pretendendo desenvolver uma aproximação académica, em Japanese Prints: From the Early Masters to the Modern James Michener atribui a Richard Lane o encargo de redigir as notas descritivas de cada gravura. Ainda assim, Michener tem a intuição de esclarecer que, tal como as via, as obras do ukiyo-e têm uma identidade própria e singular, incomparável à arte produzida no Ocidente, num esforço de ruptura com a visão eurocêntrica que dominava a leitura de Goncourt e de outros na sua esteira. Para esse confronto com o «ocidentalismo», Michener poderá ter sido influenciado pela mulher ou, melhor dizendo, pela experiência de uma relação sentimental e matrimonial com uma mulher de ascendência japonesa, para a qual essa identidade ancestral era, para mais, muito vincada. Ou, então, a perspectiva de Michener, pretendia tão-só afirmar o óbvio, sendo de notar que também ele não se exime de, por vezes, resvalar num registo próximo do de Edmond de Goncourt, ao dizer, por exemplo, que um díptico de Kiyonaga «has a Vermeer quality» (p. 175), devendo também assinalar-se que algumas das suas apreciações padecem de um certo simplismo (v.g., ao caracterizar a visão da Natureza de Hokusai como «épica», por oposição à de Hiroshige, «lírica» − p. 176). Atente-se, em todo o caso, no seguinte trecho: «The more one studies ukiyo-e landscapes, the more he becomes convinced that these Japanese works must not be compared to those created in the West. Hokusai and Hiroshige did not see nature in the way that Lorraine, Turner, Constable, and Cezanne saw it. The Japanese artists entetainedv a special vision, and from it built a major contribution to world art. It derives from Chinese and Japanese antecedentes and cannot be confused with any other That was one of the reasons why ukiyo-e landscapes were able to speak so strongly to men like Van Gogh, Degas, and Manet; their shock value was undiminished, and remains so today.» (p. 176).   
         Portugal está presente, ainda que de forma fugaz e discreta, na obra de James Albert Michener, mesmo que de um modo que não é obviamente comparável ao de Espanha, país a que o escritor dedicou um extenso relato de viagens, Iberia. Spanish Travels and Reflections (Random House, 1968), a par de livros como Miracle in Seville, de 1995, e The Drifters (Random House, 1971). Traduzida entre nós com o título Filhos de Torremolinos (Publicações Europa-América, 1973), a acção desta novela desenrola-se parcialmente no Algarve, com passagens em Alte e Albufeira (ver aqui; cf. tb. Marilyn S. Severson, ob. cit., pp. 26ss).
 
Em Iberia, a sua viagem pela Espanha franquista, de que existe tradução brasileira feita em 1968 pela Editora Record, mas não portuguesa, Michener afirma, a dado trecho, que poderia, ou deveria, ter escrito um capítulo sobre o nosso país. «Nos anos em que visitei Espanha nunca perdi a oportunidade de ir até Portugal», diz, acrescentando que uma das mais repousantes férias da sua vida foi passada em Sintra, onde ele e um grupo de amigos decidiram alugar uma quinta durante um mais de um mês. Fazendo longas caminhadas pela Serra de Sintra, Michener evocou Byron, naturalmente, e o seu anfitrião inglês era um conhecedor profundo da obra do poeta morto em Missolonghi.
 
Michener mostra-se surpreendido pelo número inusitado de ingleses que escolhiam Portugal como destino, e o seu interlocutor britânico pede-lhe para não revelar o segredo deste país nos Estados Unidos, apavorado com a perspectiva de Sintra ou de outros tesouros escondidos serem devassados por hordas de turistas norte-americanos. «It was Europe’s most economical retirement spot; it had the best servants, the best wine, some of the best food, and a host of small localities from Porto in the north to Faro in the south to which an educated Englishman could retire in dignity», lê-se em Iberia.
 
Ainda que reconheça que a sua paixão por Espanha era superior, Michener considerou, após ter visitado algumas vezes Portugal, em duas ocasiões em estadas prolongadas (mas não referidas nas suas memórias), que tinham razão os que lhe diziam ser o nosso país mais limpo e mais organizado, acrescentando, todavia, que lhe faltava a cultura de Velázquez, de Victoria, de García Lorca, de Santa Teresa ou de Séneca. «The genius of the Iberian peninsula seemed to have resided principally in the more easterly regions, and it was for this reason that I have preferred Spain.» Não era essa, contudo, a opinião da mulher: «you’re being silly and unfair», afirmou Mari Subosawa, dizendo mais:
 
«Portugal is much finer than you admit  to be.»   
 
 
 
 

 

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