28.
No
Ocidente, uma das primeiras monografias sobre a obra de Katsushika Hokusai foi
escrita por Edmond de Goncourt
(1822-1896) e publicada em 1896, o ano da sua morte. Pode ser consultada aqui.
A
edição definitiva desse trabalho, publicada em 1922 sob a direcção da Academia Goncourt (que desde 1903
atribui anualmente o famoso Prix Goncourt),
foi levada a cabo pelos editores parisienses Ernest Flammarion e Eugène
Fasquelle, e contém um posfácio assinado pelo romancista e dramaturgo Léon Hennique (1850-1935), que,
após ter sido, conjuntamente com o escritor Alphonse Daudet (1840-1897), executor testamentário de Edmond
de Goncourt, participou no difícil processo de instituição da Academia Goncourt
(dada a oposição dos herdeiros, travou-se uma intensa batalha judicial, vencida
graças à intervenção, como advogado a favor da Academia, de Raymond Poincaré,
futuro Presidente da República francesa; só em 1900 foi possível oficializar a Société
littéraire des Goncourt, tendo Léon Hennique sido seu primeiro presidente, de
1907 a 1912).
Estudo desenvolvido de quase 400
páginas, mas essencialmente descritivo, marcado pela preocupação de realizar a
listagem e o levantamento dos trabalhos do mestre japonês, o livro de Goncourt não
confere especial relevo à obra que viria a tornar-se um ícone global e a celebrizar
o nome de Katsushika Hokusai. Na verdade, mesmo sobre a série em que A Grande Onda se insere, Goncourt
limita-se praticamente a dizer:
«De 1823 a 1829 surge, sob o título As
Trinta e Seis Vistas de Fougakou (Fouzi-yama), uma série de impressões
célebres, que em princípio deveria conter 36 estampas mas cujo número ascendeu
a 46.
Esta série na horizontal, a toda a
largura, com as cores um pouco cruas mas com a ambição de se aproximar das
colorações da natureza sob todas as cambiantes de luz, é o álbum inspirador dos
impressionistas da actualidade.»
Esta última observação sobre os
impressionistas, feita por quem os conhecia de perto, reveste-se de especial
significado e valor histórico.
Especificamente sobre A
Grande Onda (Kanagawa oki nami-ura), Goncourt tece algumas considerações elogiosas mas não lhe dedica mais do que algumas linhas numa obra de quase quatro centenas de páginas: «Planche qui devrait s'appeler la Vague et qui en est comme le dessin un peu divinisé par un peintre sous la terreur religieuse de la mer redoutable entourant de toute part sa patrie: dessin qui vous donne le coléreux de sa montée dans le ciel, l'azur profond de l'intérieur transparent de la courbe, le déchirement de sa crête qui s'éparpille en une pluie de gouttelettes ayant la forme de griffes d'animaux.» Note-se, para mais, que, do ponto de vista estético ou artístico,
Edmond de Goncourt não se mostra particularmente entusiástico perante Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, ao
contrário do que sucede em relação a outros trabalhos do seu biografado, e
considera mesmo «um pouco cruas» as gravuras daquela série.
Para o japonisme de Goncourt – como, de resto, o de todos os que seguiram
esta voga artística e cultural – foi decisiva a acção de Hayashi Tadamasa
(1853-1906). O ponto foi estudado por Brigitte Koyama-Richard no livro Japon rêvé. Edmond de Goncourt et Hayashi Tadamasa (Paris, Hermann, 2001), de que existe uma recensão publicada nos Cahiers Edmond et Jules de Goncourt,
vol. 10, 2003, pp. 314-316 (disponível aqui)
Da leitura dessa recensão, assinada por Jean-Louis Cabanès, é possível inferir
a importância que Hayashi teve, desde logo, na tradução de textos japoneses e,
de um modo geral, na familiarização de Goncourt com a cultura nipónica, que
admirava mas que, naturalmente, não dominava, tendo consciência de uma
limitação que Hayashi, de certo modo, contribuiu para superar.
Hayashi Tadamasa deslocou-se a França para
servir como tradutor da empresa Kiriu Kōsho na Exposição Universal de 1878,
conhecendo Edmond de Goncourt no final de Novembro desse ano. Após uma
deslocação à Holanda, instala-se em Paris, tornando-se negociante de arte
japonesa, actividade em que concorria com Siegfried Bing e Philippe Sichel. Em
1890, abriu uma loja de arte oriental na Rue de la Victoire, em Paris, culminado
um processo iniciado com a criação, em conjunto com Wakai Oyaju (Kenzaburô), de uma empresa de importação
de objectos japoneses, que viu a luz em 1883. Ao que parece, Hayashi terá
também como sócio Iijima Kyoshin, o grande biógrafo do autor de A Grande Onda, que em 1893 escreveu o
livro Katsuskhika Hokusai (cuja
tradução para língua inglesa se encontra anunciada para breve).
Naquele
mesmo ano de 1883, com a publicação, por Louis Gonse, do livro L’Art Japonais e com a realização, nesse
mesmo ano, de uma grande exposição de arte japonesa em Paris, também sob a
égide de Louis Gonse, ocorre um ponto de viragem no japonisme, no sentido em que este se torna, por assim dizer,
«público», acessível a um grande número de leitores do livro de Gonse ou de
visitantes da mostra por ele organizada na Galerie Georges Petit (cf. Notas sobre A Grande Onda – 27).
Centenas ou mesmo milhares de objectos, que até então se encontravam apenas no
interior das residências dos grandes coleccionadores, puderam ser vistos pelo
público. Entre eles – e pela primeira vez –, um exemplar de A Grande Onda, ainda que esta obra não
tenha suscitado o interesse ou despertado o entusiasmo que viria a motivar nos
anos vindouros e até à actualidade.
De acordo com o livro de Brigitte
Koyama-Richard (ou do que dele podemos inferir com base na recensão de Jean-Louis
Cabanès), Edmond de Goncourt tinha ou pretendia ter, de algum modo, uma relação
privilegiada com Hayashi (que, saliente-se, ajudara já Louis Gonse na escrita
de L’Art Japonais), reclamando deste
proeminência no confronto com os demais coleccionadores japoneses, pedindo-lhe
constante auxílio para conferir um carácter erudito ao estudo que estava a
preparar sobre a obra de Hokusai (e antes dele, para a monografia que publicou
em 1891 sobre Utamaro) e, enfim, solicitando os seus ofícios como tradutor, tarefa
que o japonês cumpre com uma «patience obligeante». Um caderno de notas citado
por Brigitte Koyama-Richard permite concluir que o japonês teve um papel
decisivo na génese da monografia de Goncourt sobre a obra do criador de A Grande Onda.
A
par da difusão de obras de mestres antigos ou de criadores mais velhos junto de
nomes como Émile Guimet, Edmond de Goncourt, Félix Régamey, Claude Monet,
Camille Pissarro ou do joalheiro Vever, Hayashi Tadamasa foi patrono de jovens artistas
nipónicos instalados em Paris, que apresentou a ao pintor e professor de arte Raphaël Collin (1850-1916), o que
levou à gestação de uma pintura «ocidentalizada», cujo principal expoente foi Kuroda Seiki
(1866-1924), um dos líderes do movimento yōga
(«ao estilo ocidental») da arte japonesa de finais do século XIX e princípios
do século XX. Tendo escrito no número da revista Paris Illustré consagrado ao Japão (4º ano, nºs 45-46, Maio de 1886), Hayashi fez uma doação de
sabres japoneses ao Museu do Louvre, tendo escrito o respectivo catálogo,
editado em 1894 na Rue de La Victoire pela sua loja e empresa comercial (e
disponível aqui).
A capa do número de Paris Illustré em
que Hayashi colaborou, da autoria do xilogravurista japonês Keisan Eisen
(1790-1848), será a fonte de inspiração
directa para o quadro A Cortesã, que Van Gogh pintou em 1887 (cf. a informação do Museu Van Gogh de Amesterdão, aqui). Entre muitos outros ensaios, Hayashi será também um dos autores
da obra colectiva Les Affiches Étrangères
Illustrèes (Paris, G. Boudet Éditeur e C. Tallandier, Librairie, 1897,
disponível aqui).
Vincent Van Gogh, A Cortesã (segundo Meisen), 1887
|
Em
onze viagens de ida e volta ao Japão, Hayashi recebeu 218 encomendas do seu
país, onde se contava o número impressivo de 156.487 estampas. Contribuindo,
assim, para a difusão e comercialização das obras do «mundo flutuante» junto
dos impressionistas ou de Paul Gauguin, Hayashi Tadamasa criou também a sua
própria colecção de pintura europeia, graças aos contactos privilegiados que
detinha com nomes como Pisarro, Guillaumin ou Monet. É ilustrativo que mais de
dez por cento da colecção 300 xilogravuras ukiyo-e
de Claude Monet tenham sido vendidos por Hayashi ou pelo seu sócio, Wakai Oyaju,
tendo também Hayashi oferecido a Monet as íris (impropriamente designados
lírios) para o seu jardim de Giverny. A par disso, apoiava também artistas
europeus, tendo sido mecenas do pintor e ilustrador Paul Renouard (1845-1924),
tendo Hayashi reunido uma colecção de cerca de 200 gravuras e desenhos de
Renouard que, com a morte daquele, os seus herdeiros legaram ao Museu da Casa
Imperial de Tóquio (actual Museu Nacional de Tóquio, que em 2006 expôs as obras
de Paul Renouard legadas pelos herdeiros de Hayashi, aqui).
Decerto
em resultado da projecção que adquiriu na época, Hayashi Tadamasa foi designado
comissário geral para o Japão da Exposição Universal de Paris de 1900. No
âmbito dessa exposição, foi publicado Histoire
de L’Art du Japon (Paris, Maurice de Brunoff, 1900, disponível aqui),
que dedica algumas linhas elogiosas a Hokusai, enaltecendo os dotes
«admiráveis» que lhe permitiram criar «um estilo muito particular»: «Sa touche
est libre, la composition fértile. Il a reproduit tous les aspects de la vie,
et chacun d’eux sans y négliger aucun côté intéressant.» (ob. cit., p. 211). Não se menciona A Grande Onda nem, de resto, qualquer trabalho de Hokusai em
particular.
Encerrada
a Exposição Universal de Paris de 1900, Hayashi Tadamasa regressou ao seu país
natal no ano seguinte, morrendo em Tóquio em 1906. Uma parte significativa da sua
colecção seria leiloada em 1902 e em 1903, nas Galeries Durand-Ruel, em Paris,
tendo como perito Siegfried Bing (ver catálogos aqui
e aqui)
e nos Estados Unidos em 1913. Do catálogo de Paris constam alguns trabalhos de Hokusai, mas não A Grande Onda.
No
seu livro sobre A Grande Onda (Hokusai’s Great Wave. Biography of a Global Icon, Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015, p. 105), Christine M. E.
Guth afirma que Hayashi Tadamasa, a par de outros negociantes de arte japoneses
como Matsuki Bunkyō e Yamanaka Sadajirō, comerciou exemplares da xilogravura de
Hokusai, inclusivamente no mercado norte-americano, mas não apresenta elementos
que factualmente demonstrem essa afirmação (que, note-se, é bastante plausível).
O
livro de Goncourt sobre Hokusai tem sido objecto de várias edições ao longo dos
anos, em versões simplificadas ou remodeladas e com abundantes ilustrações a
cores que não constavam da edição original. Numa edição relativamente recente,
efectuada pela Parkstone International, o texto de Goncourt foi adaptado e
simplificado, preservando-se o relato biográfico de Hokusai mas eliminando-se
as listagens das suas obras (mantendo-se, todavia, as observações de Goncourt
sobre a «crueza» das cores em Trinta e
Seis Vistas do Monte Fuji – p. 221). Em termos iconográficos, foi dado
grande relevo à Grande Onda (reprodução
a toda a largura das pp. 132-133), o que comprova o estatuto quase mítico que
esta obra adquiriu anos após a morte de Edmond de Goncourt.
Em
Setembro de 2018, e igualmente sob chancela da Parkstone Press, será lançada
mais uma edição do livro de Edmond de Goncourt sobre Katsushika Hokusai (aqui).
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