domingo, 18 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 28

 
 



 
28.
        
No Ocidente, uma das primeiras monografias sobre a obra de Katsushika Hokusai foi escrita por Edmond de Goncourt (1822-1896) e publicada em 1896, o ano da sua morte. Pode ser consultada aqui.



Edmond de Goncourt (1822-1896), fotografado por Nadar, c. 1877 
 
 
A edição definitiva desse trabalho, publicada em 1922 sob a direcção da Academia Goncourt (que desde 1903 atribui anualmente o famoso Prix Goncourt), foi levada a cabo pelos editores parisienses Ernest Flammarion e Eugène Fasquelle, e contém um posfácio assinado pelo romancista e dramaturgo Léon Hennique (1850-1935), que, após ter sido, conjuntamente com o escritor Alphonse Daudet (1840-1897), executor testamentário de Edmond de Goncourt, participou no difícil processo de instituição da Academia Goncourt (dada a oposição dos herdeiros, travou-se uma intensa batalha judicial, vencida graças à intervenção, como advogado a favor da Academia, de Raymond Poincaré, futuro Presidente da República francesa; só em 1900 foi possível oficializar a Société littéraire des Goncourt, tendo Léon Hennique sido seu primeiro presidente, de 1907 a 1912).
         Estudo desenvolvido de quase 400 páginas, mas essencialmente descritivo, marcado pela preocupação de realizar a listagem e o levantamento dos trabalhos do mestre japonês, o livro de Goncourt não confere especial relevo à obra que viria a tornar-se um ícone global e a celebrizar o nome de Katsushika Hokusai. Na verdade, mesmo sobre a série em que A Grande Onda se insere, Goncourt limita-se praticamente a dizer: 
         «De 1823 a 1829 surge, sob o título As Trinta e Seis Vistas de Fougakou (Fouzi-yama), uma série de impressões célebres, que em princípio deveria conter 36 estampas mas cujo número ascendeu a 46.
         Esta série na horizontal, a toda a largura, com as cores um pouco cruas mas com a ambição de se aproximar das colorações da natureza sob todas as cambiantes de luz, é o álbum inspirador dos impressionistas da actualidade.»
         Esta última observação sobre os impressionistas, feita por quem os conhecia de perto, reveste-se de especial significado e valor histórico.
Especificamente sobre A Grande Onda (Kanagawa oki nami-ura), Goncourt tece algumas considerações elogiosas mas não lhe dedica mais do que algumas linhas numa obra de quase quatro centenas de páginas: «Planche qui devrait s'appeler la Vague et qui en est comme le dessin un peu divinisé par un peintre sous la terreur religieuse de la mer redoutable entourant de toute part sa patrie: dessin qui vous donne le coléreux de sa montée dans le ciel, l'azur profond de l'intérieur transparent de la courbe, le déchirement de sa crête qui s'éparpille en une pluie de gouttelettes ayant la forme de griffes d'animaux.» Note-se, para mais, que, do ponto de vista estético ou artístico, Edmond de Goncourt não se mostra particularmente entusiástico perante Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, ao contrário do que sucede em relação a outros trabalhos do seu biografado, e considera mesmo «um pouco cruas» as gravuras daquela série.
         Para o japonisme de Goncourt – como, de resto, o de todos os que seguiram esta voga artística e cultural – foi decisiva a acção de Hayashi Tadamasa (1853-1906). O ponto foi estudado por Brigitte Koyama-Richard no livro Japon rêvé. Edmond de Goncourt et Hayashi Tadamasa (Paris, Hermann, 2001), de que existe uma recensão publicada nos Cahiers Edmond et Jules de Goncourt, vol. 10, 2003, pp. 314-316 (disponível aqui) Da leitura dessa recensão, assinada por Jean-Louis Cabanès, é possível inferir a importância que Hayashi teve, desde logo, na tradução de textos japoneses e, de um modo geral, na familiarização de Goncourt com a cultura nipónica, que admirava mas que, naturalmente, não dominava, tendo consciência de uma limitação que Hayashi, de certo modo, contribuiu para superar.
 

Hayashi Tadamasa (1853-1906)



 
         Hayashi Tadamasa deslocou-se a França para servir como tradutor da empresa Kiriu Kōsho na Exposição Universal de 1878, conhecendo Edmond de Goncourt no final de Novembro desse ano. Após uma deslocação à Holanda, instala-se em Paris, tornando-se negociante de arte japonesa, actividade em que concorria com Siegfried Bing e Philippe Sichel. Em 1890, abriu uma loja de arte oriental na Rue de la Victoire, em Paris, culminado um processo iniciado com a criação, em conjunto com Wakai Oyaju (Kenzaburô), de uma empresa de importação de objectos japoneses, que viu a luz em 1883. Ao que parece, Hayashi terá também como sócio Iijima Kyoshin, o grande biógrafo do autor de A Grande Onda, que em 1893 escreveu o livro Katsuskhika Hokusai (cuja tradução para língua inglesa se encontra anunciada para breve).
Naquele mesmo ano de 1883, com a publicação, por Louis Gonse, do livro L’Art Japonais e com a realização, nesse mesmo ano, de uma grande exposição de arte japonesa em Paris, também sob a égide de Louis Gonse, ocorre um ponto de viragem no japonisme, no sentido em que este se torna, por assim dizer, «público», acessível a um grande número de leitores do livro de Gonse ou de visitantes da mostra por ele organizada na Galerie Georges Petit (cf. Notas sobre A Grande Onda – 27). Centenas ou mesmo milhares de objectos, que até então se encontravam apenas no interior das residências dos grandes coleccionadores, puderam ser vistos pelo público. Entre eles – e pela primeira vez –, um exemplar de A Grande Onda, ainda que esta obra não tenha suscitado o interesse ou despertado o entusiasmo que viria a motivar nos anos vindouros e até à actualidade.
         De acordo com o livro de Brigitte Koyama-Richard (ou do que dele podemos inferir com base na recensão de Jean-Louis Cabanès), Edmond de Goncourt tinha ou pretendia ter, de algum modo, uma relação privilegiada com Hayashi (que, saliente-se, ajudara já Louis Gonse na escrita de L’Art Japonais), reclamando deste proeminência no confronto com os demais coleccionadores japoneses, pedindo-lhe constante auxílio para conferir um carácter erudito ao estudo que estava a preparar sobre a obra de Hokusai (e antes dele, para a monografia que publicou em 1891 sobre Utamaro) e, enfim, solicitando os seus ofícios como tradutor, tarefa que o japonês cumpre com uma «patience obligeante». Um caderno de notas citado por Brigitte Koyama-Richard permite concluir que o japonês teve um papel decisivo na génese da monografia de Goncourt sobre a obra do criador de A Grande Onda.
A par da difusão de obras de mestres antigos ou de criadores mais velhos junto de nomes como Émile Guimet, Edmond de Goncourt, Félix Régamey, Claude Monet, Camille Pissarro ou do joalheiro Vever, Hayashi Tadamasa foi patrono de jovens artistas nipónicos instalados em Paris, que apresentou a ao pintor e professor de arte Raphaël Collin  (1850-1916), o que levou à gestação de uma pintura «ocidentalizada», cujo principal expoente foi Kuroda Seiki (1866-1924), um dos líderes do movimento yōga («ao estilo ocidental») da arte japonesa de finais do século XIX e princípios do século XX. Tendo escrito no número da revista Paris Illustré consagrado ao Japão (4º ano, nºs 45-46,  Maio de 1886), Hayashi fez uma doação de sabres japoneses ao Museu do Louvre, tendo escrito o respectivo catálogo, editado em 1894 na Rue de La Victoire pela sua loja e empresa comercial (e disponível aqui). A capa do número de Paris Illustré em que Hayashi colaborou, da autoria do xilogravurista japonês Keisan Eisen (1790-1848),  será a fonte de inspiração directa para o quadro A Cortesã, que Van Gogh pintou em 1887 (cf. a informação do Museu Van Gogh de Amesterdão, aqui). Entre muitos outros ensaios, Hayashi será também um dos autores da obra colectiva Les Affiches Étrangères Illustrèes (Paris, G. Boudet Éditeur e C. Tallandier, Librairie, 1897, disponível aqui).





Paris Illustré, 4º ano, nºs 45-46, Maio de 1886
Capa de Keisan Eisen




Vincent Van Gogh, estudo para A Cortesã

 
Vincent Van Gogh, A Cortesã (segundo Meisen), 1887



 
Em onze viagens de ida e volta ao Japão, Hayashi recebeu 218 encomendas do seu país, onde se contava o número impressivo de 156.487 estampas. Contribuindo, assim, para a difusão e comercialização das obras do «mundo flutuante» junto dos impressionistas ou de Paul Gauguin, Hayashi Tadamasa criou também a sua própria colecção de pintura europeia, graças aos contactos privilegiados que detinha com nomes como Pisarro, Guillaumin ou Monet. É ilustrativo que mais de dez por cento da colecção 300 xilogravuras ukiyo-e de Claude Monet tenham sido vendidos por Hayashi ou pelo seu sócio, Wakai Oyaju, tendo também Hayashi oferecido a Monet as íris (impropriamente designados lírios) para o seu jardim de Giverny. A par disso, apoiava também artistas europeus, tendo sido mecenas do pintor e ilustrador Paul Renouard (1845-1924), tendo Hayashi reunido uma colecção de cerca de 200 gravuras e desenhos de Renouard que, com a morte daquele, os seus herdeiros legaram ao Museu da Casa Imperial de Tóquio (actual Museu Nacional de Tóquio, que em 2006 expôs as obras de Paul Renouard legadas pelos herdeiros de Hayashi, aqui).
 

Albert Bartholomé, Máscara de Tadamasa Hayashi, 1892
Musée d'Orsay, RF 4303



 
Decerto em resultado da projecção que adquiriu na época, Hayashi Tadamasa foi designado comissário geral para o Japão da Exposição Universal de Paris de 1900. No âmbito dessa exposição, foi publicado Histoire de L’Art du Japon (Paris, Maurice de Brunoff, 1900, disponível aqui), que dedica algumas linhas elogiosas a Hokusai, enaltecendo os dotes «admiráveis» que lhe permitiram criar «um estilo muito particular»: «Sa touche est libre, la composition fértile. Il a reproduit tous les aspects de la vie, et chacun d’eux sans y négliger aucun côté intéressant.» (ob. cit., p. 211). Não se menciona A Grande Onda nem, de resto, qualquer trabalho de Hokusai em particular.  
Encerrada a Exposição Universal de Paris de 1900, Hayashi Tadamasa regressou ao seu país natal no ano seguinte, morrendo em Tóquio em 1906. Uma parte significativa da sua colecção seria leiloada em 1902 e em 1903, nas Galeries Durand-Ruel, em Paris, tendo como perito Siegfried Bing (ver catálogos aqui e aqui) e nos Estados Unidos em 1913. Do catálogo de Paris constam alguns trabalhos de Hokusai, mas não A Grande Onda.
No seu livro sobre A Grande Onda (Hokusai’s Great Wave. Biography of a Global Icon, Honolulu, University of Hawai‘i Press, 2015, p. 105), Christine M. E. Guth afirma que Hayashi Tadamasa, a par de outros negociantes de arte japoneses como Matsuki Bunkyō e Yamanaka Sadajirō, comerciou exemplares da xilogravura de Hokusai, inclusivamente no mercado norte-americano, mas não apresenta elementos que factualmente demonstrem essa afirmação (que, note-se, é bastante plausível).   
O livro de Goncourt sobre Hokusai tem sido objecto de várias edições ao longo dos anos, em versões simplificadas ou remodeladas e com abundantes ilustrações a cores que não constavam da edição original. Numa edição relativamente recente, efectuada pela Parkstone International, o texto de Goncourt foi adaptado e simplificado, preservando-se o relato biográfico de Hokusai mas eliminando-se as listagens das suas obras (mantendo-se, todavia, as observações de Goncourt sobre a «crueza» das cores em Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji – p. 221). Em termos iconográficos, foi dado grande relevo à Grande Onda (reprodução a toda a largura das pp. 132-133), o que comprova o estatuto quase mítico que esta obra adquiriu anos após a morte de Edmond de Goncourt.
Em Setembro de 2018, e igualmente sob chancela da Parkstone Press, será lançada mais uma edição do livro de Edmond de Goncourt sobre Katsushika Hokusai (aqui).
 
  
 

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