quinta-feira, 29 de março de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 37

 




         37.
 
         Não se sabe ao certo que carga transportam os barcos de A Grande Onda – se é que transportam alguma carga.
 
         Alguns afirmam que os barcos levam o produto de uma pescaria de bonitos, rumo ao mercado de peixe de Edo (Tóquio), onde aquela espécie atingia preços astronómicos (cf. Timothy Clark, Hokusai’s Great Wave, Londres, The British Museum Press, 2011, p. 17, para quem os barcos estariam provavelmente a encaminhar-se ao navio-mãe para transferir a carga que depois seria transportada rapidamente para Edo).
 
         Por sua vez, Julyan H.E. Cartwright e Hisami Nakamura, num estudo aprofundado de A Grande Onda, não excluem tratar-se de um transporte de bonitos (para a confecção de sashimi) e de atuns (para a feitura de sushi), que eram pescados na Baía de Sagami durante as suas migrações de Primavera e de Outono e levados nos barcos oshiokuri até Tóquio (sobre os oshiokuri, cf. Notas sobre A Grande Onda – 31).
 
         A questão é relevante seja para datar a altura do ano em que teve lugar a dramática cena retratada por Hokusai (muito provavelmente, as primeiras horas de uma manhã de Primavera), seja para determinar a sua localização geográfica.

 
         A este propósito, Cartwright e Nakamura escrevem:
 
«In Hokusai's day, oshiokuri were licensed craft permitting them to pass a checkpoint at Uraga, at the tip of Miura Peninsula between Sagami Bay and Tokyo Bay, without control, so that their cargo should arrive at market as quickly as possible. Once they left their home port, oshiokuri might not return for as long as 10 days but would travel to and fro between a rendezvous point at sea where they would meet the fishing boats and the fish market, for which purposes the crew would carry a rice cooker and mushiro or rush mats to eat and sleep in the oshiokuri. Owing to the perishable nature of the cargo, speed was essential — the trip would take five hours with a tail wind carrying 50 tuna, about three tons, from Misaki in Miura, 50 km south of Tokyo, for example—for this reason, as we can observe, in these oshiokuri there are eight scullers and two relief crew members per boat. The boats are seen heading away from Tokyo. Have they been surprised by the waves on their way back from Tokyo—they generally carried rice and miscellaneous goods on the return journey — or have they been forced to come about to head into the waves while on their way there? We can glimpse what might be some bagged cargo in the hold of one boat; rice would of course have been bagged, but dried fish also might have been placed inside a bag. Some oshiokuri even transported species such as squid and mackerel live to the fish market, using a fish tank installed in the hold that communicated with the sea; we cannot see any signs of such a tank in these boats, though, and tuna and bonito are probably too large to have been carried in this way. It is possible that what we view is not the cargo itself but mats on which to place it, or even the bed mats or indeed the sails that oshiokuri carried. If what we see is just empty bags or mats in the hold, the oshiokuri may be heading to meet the fishing boats at a purchase point somewhere offshore to collect their catch.»
  
         Na verdade, alguns elementos parecem contrariar a ideia de que os navios transportariam peixe. Ao observarmos o seu interior, na nesga que Hokusai deixa entrever, nada há de muito concludente.
 
Deve, todavia, ter-se presente um ponto a que Cartwright e Nakamura não dão o merecido realce: a imagem de A Grande Onda é extremamente estilizada e depurada nos seus elementos acessórios ou adjacentes (o Fuji, os rostos dos marinheiros, o desenho das embarcações) por forma a valorizar o essencial, a onda, a grande vaga. 
 
 
Daí que não tenha havido especial atenção aos pormenores no desenho do interior dos oshiokuri, ainda que, como notam Cartwright e Nakamura, seja seguro que, ao contrário do que por vezes se praticava nas artes da pesca na região de Edo, os barcos não levavam tanques de água salgada com animais vivos, geralmente chocos e cavalas.
 
Quanto ao mais, tanto pode tratar-se de uma carga de bonitos e de atuns, prestes a ser levada para junto da frota pesqueira, como podem ser sacos com arroz ou com peixe seco, sendo até possível que não estejamos a ver carga alguma mas tão-só os recipientes onde a mesma deveria ser colocada. O que observamos na imagem podem ser, inclusivamente, as velas, sabendo-se que os oshiokuri tinham um mastro central, amovível, para navegar ao vento quando este o permitisse.
 
 Na gastronomia japonesa, o bonito ou katsuo () é uma espécie particularmente apreciada, sendo pescada nos portos de Numazu, Shimizu, Yaizu e Omaezaki, na Prefeitura de Shizuoka. É também apelidado katsu (na região de Tohoku), Honkatsuo (na Ilha Kyushu), Magatsuo (nas ilhas Shikoku e Kyushu) e Suji (na Prefeitura de Yamaguchi).
 
No Japão, é uma espécie pescada no início da Primavera (sendo então chamado sho gatsuo, «o primeiro bonito da Primavera») ou no final do Outono (modori gatsuo, «bonito de regresso no fim de Outono»).
 
Na culinária, é servido cru, como sashimi, com ou sem pele, acompanhado preferencialmente de molho de soja (shōyu) misturado com raspas de alho, ou com wasabi e um toque de limão e soja. Entre outras formas, é também servido ligeiramente grelhado como sushi (para uma descrição mais pormenorizada, ver aqui, por exemplo, ou aqui)
 



Numa descrição simples, extraída de uma obra de divulgação, diz-se: «confundido por vezes com o atum-serra, o bonito é parecido com o atum, mas pertence, na verdade, à família da cavala. Tradicionalmente é pescado à cana, e não à rede, o que poderia danificar a sua carne, e é um dos mais velozes nadadores do mar. É consumido no sushi, e marinado ou levemente grelhado no sashimi. Seco e em aparas, é usado na confecção do dashi, o caldo japonês básico. Regra geral, o bonito é servido com gengibre ralado, que complementa o seu característico sabor cheio e rico». Cada lombo de bonito, de carne rosada, dá origem a duas grandes postas que são posteriormente cortadas em pequenos pedaços; para o sushi e para o sashimi, a pele do katsuo não é retirada, sendo os filetes levemente grelhados e depois submersos em água fria: cf. Kimiko Barber e Hiroki Takemura, com fotografias de Ian O’Leary, Sushi, trad. portuguesa, Dorling Kindersley-Civilização Editora, 2003, pp. 58-59, obra que informa ainda, sem preocupações de rigor taxonómico, ser o bonito um «peixe migratório de tamanho médio, muito comum nas águas quentes do Pacífico. Migra em Fevereiro para o Norte, ao longo da costa japonesa, e surge na ementa dos bares de sushi de Tóquio no início de Maio, assinalando o princípio do Verão.» 

 
Num guia mais completo sobre os peixes utilizados na confecção do sushi, o katsuo surge integrado nos «peixes de Primavera» com a seguinte descrição: «During April and May, schools of bonito (katsuo) migrating north from the southern reaches of the Japanese archipelago acquire a thin layer of subcutaneous fat. These fish are known as hatsugatsuo (first bonito) and have vivid red flesh, a mildly fatty quality, a subtle tartness, and even a whiff of blood. Of all fish, good taste is hardest to pick in bonito: among the specimens at market there will always be many that are plump and fresh, but totally devoid of fat or flavor, astringent even. The very finest bonito tastes wonderful seared and made into nigiri, the addition of yellow new ginger and vivid green chives as condiments making it a visual treat to»: cf. Kazuo Nagayma (texto) e Hiroshi Yoda (fotografias) Sushi | , Bilingual Edition, Tóquio, PIE International, 2011, p. 45.  
 
 
    

        Por sua vez, um artigo extenso artigo saído no The Japan Times da autoria de Makiko Itoh, intitulado «Katsuo, Japan’s ubiquitous tuna», e que aqui se seguirá de perto, explica que se, nos nossos dias, o peixe mais disputado é o maguro (atum, especialmente o bluefin, atum azul ou atum de aleta azul, Thunnus maccoyii, descrito aqui na Tábua das Espécies da FishBase), que atinge preços elevadíssimos Mercado de Peixe de Tsukiji, em Tóquio, a ponto de a espécie se encontrar ameaçada de extinção devido à pesca excessiva, a popularidade do atum azul ou maguro surgiu apenas no século XX; até então, a espécie mais apreciada e valorizada era o bonito ou katsuo.
 
         Seco ou fermentado, o katsuo era transformado em katsuobushi, um dos ingredientes do daishi, o caldo básico da alimentação japonesa (ver aqui). Era também conservado num molho agridoce e comido como tsukudani, curado em sal, como shiokara; envolto em farinha e frito e, mais frequentemente, comido cru ou quase cru. A forma mais popular de ser cozinhado era como tataki, ligeiramente grelhado no exterior e com o interior cru, sendo fatiado e comido como sashimi.  
 
         Há registos de que o katsuo já era servido na corte imperial Yamato, no século III, e a sua valorização pelos japoneses ficou patente no facto de o katsuo seco ou fermentado ser uma das oferendas levadas aos santuários xintoístas. Não era, todavia, um peixe reservado às elites, como o comprova o facto de, no Período Kamakura (1192-1333), o monge Yoshida Kenkō  (1284-1350) ter dito em Tsurezuregusa, uma colecção de ensaios redigidos entre 1330 e 1332, que até os pobres deitavam fora as cabeças de bonito. 



Yoshida Kenko (1284-1350)
 
 
 
No entanto, no Período Edo (1603-1867), a época de A Grande Onda  de Katsushika Hokusai, o bonito ou katsuo passou a ser especialmente valorizado, em particular aquele que era apanhado no final da Primavera ou no início do Verão (mais do que o do Outono), existindo até um dito popular que afirmava: «Sou capaz de empenhar a minha mulher por uma posta hatsuo-gatsuo» («hatsuo-gatsuo», de acordo com as regras haiku, era a palavra que indica o início do Verão).  

Katsuwonus pelamis
 
 
         Descrito por Lineu em 1758, o Katsuwonus pelamis (código FAO: SKJ) é uma espécie da classe dos actinoperígeos (actinopterygii), da ordem dos perciformes (Percomorphi), da família Scombridae, da subfamília Scombrinae, do género Katsuwonus. O seu nome deriva do japonês katuwo ou katsuo () e tem como designações comuns bonito, bonito-listrado, gaiado, atum-bonito ou atum-gaiado. Para uma informação taxonómica mais completa, deve consultar-se o Integrated Taxonomic Information System, onde o Katsuwonus pelamis figura com o número de série 172401 (aqui). Tem como sinónimos Euthynnus pelamis (Lineu, 1758), Katsuwonus vagans (Lesson, 1829), Scomber pelamys (Lineu, 1758), Scomber pelamis (Lineu, 1758), Thynnus vagans (Lesson, 1829).  
 
         Em diversas línguas, o Katsuwonus pelamis tem os seguintes nomes: Skipjack tuna (inglês), Echter bonito (alemão), Listado, bonito de altura  (castelhano), Bonite à ventre rayé (francês), Tonnetto striato (italiano), Tonijn, skipjack (neerlandês), Atum-bonito, gaiado (português), Bugstribet bonit (dinamarquês), Palamída, Iakérda (grego), Randatúnfiskur (islandês), segundo informa Antal Vida no livro 365 Fish (com ilustrações de Tamás Kótai, trad. castelhana, Barcelona, Tandem Verlag GmbH-Vince Books, 2006, s/p.), acrescentando que o bonito se encontra nos mares mais cálidos do mundo (sobretudo com temperaturas superiores a 20º C) e tem especial predilecção por explorar as águas à superfície. Diz-se ainda que o bonito é, provavelmente, a espécie de atum que se encontra com mais frequência, tendo cada fêmea centenas de milhares de crias. O ritmo de crescimento é rápido e a maturidade sexual é alcançada por volta dos três anos de idade, quando mede cerca de 30 a 40 cm. O comprimento máximo é de 60 a 80 cm. Conclui-se dizendo que são «uns belos peixes de cor azul-marinho, que têm merecidamente o nome de bonitos, como lhes chamam os pescadores de várias partes do mundo».
 
Não é certo, no entanto, que o nome bonito derive do português ou do castelhano, línguas em que essa palavra significa «belo» ou «formoso», podendo ter a sua origem na palavra árabe bainīth. Ewm castelhano, a palavra «bonito», usada para designar uma espécie de peixe, data de 1505, pelo menos.  Antonio Pigafetta se referia ao bonito, no relato que em 1525 publicou da sua viagem ao redor do mundo (ver aqui); e, na literatura portuguesa, nas páginas de Os Pescadores, de 1923, Raul Brandão escreve: «Saltam do fundo da rede as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capatões, e uma toninha reluzente».

 
Katsuwonus pelamis


 
         Além das que atrás se referiram, o bonito tem muitas outras designações. Em castelhano, atún, atún de altura, barrilete, barrilete listado, bonita, bonito, bonito de altura, bonito del Sur, bonito de veintre rayado, bonitol, bonito listado, bonito oceánico, cachorreta, cachureta, cachurreta, descargamento, lampo, listado, llampua, merma, palomida, picosa, rayada. Em francês, bonite, bonite à ventre rayé, bonite folle, bonite ventre rayé, bonitou, bounicou, listao, thonine à ventre rayé, ton rayé. Em inglês, skipjack tuna, oceanic bonito, oceanic skipjack, skipjack, skipjack tuna, stripy.
 

         O Katsuwonus pelamis é uma espécie migratória pelágica-oceânica que tem uma distribuição natural cosmopolita nas costas tropicais e quentes-temperadas do planeta (de 15 a 30º C), como o demonstram as imagen constante do Aquamaps (http://www.aquamaps.org/), estando ausente apenas do Mediterrâneo oriental e do Mar Negro (para uma informação mais completa, ver aqui).
 
É encontrado à superfície e até 260 metros de profundidade e tem um tamanho médio de 80 cm e um peso entre 8 a 10 quilogramas (o máximo encontrado foi um exemplar com 110 cm; foram reportados um peso máximo de 34,5 quilogramas e uma idade máxima de 12 anos, de acordo com a Fishbase, informando a Wikipedia que o comprimento máximo registado foi 108 cm).
 
O Katsuwonus pelamis caracteriza-se por ter um corpo fusiforme, sem bexiga natatória, de secção arredondada e alongada, sem escamas excepto ao longo da linha lateral. Tem uma coloração escura na zona dorsal e prateada nos flancos inferiores e na barriga, apresentando quatro a seis bandas longitudinais negras ou cinzento-escuras ao longo de cada flanco. As barbatanas são possantes e longas, de coloração escura, com a primeira barbatana dorsal nitidamente mais alta do que a segunda e as barbatanas peitorais mais pequenas.    
 
Representando cerca de 40% das capturas mundiais de atum e tendo um valor comercial, o maior mercado do bonito é o asiático e, em especial, o do Japão.
  
 
        

2 comentários:

  1. Que aula de ictiologia, culinária e economia pesqueira japonesas! Obrigado António. Deu-me uma imensa vontade de ir almoçar a um restaurante nipónico. E o nome Katsushika não tem nada a ver com "katsuo"? Será comedor de bonito?

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  2. Obrigado, Rubem! Não, creio que não, mas vou averiguar.

    Um abraço, Boa Páscoa,

    António

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